Marc Chagall |
Habito o espaço das lembranças. Sei que aqui tenho corpo, tenho alma, tenho vida, tenho Otávio ainda. Lá fora, a selva vazia de suas feras, de seus ruídos é que me amedrontam, me arrebatam. Fico no lapso, sobrevivo no lapso. Sinto-me fraca.
E da vez em que Henrique me perguntava sobre a morte, me dizia que alguém lhe tinha dito que morremos e tornamos a nascer várias vidas, diferentes nomes, diferentes famílias, diferentes amores, outras experiências. Sorri, mas nada disse. Me dava conta de que morri e nasci por diversas vezes nesta mesma vida e para isto não haveria resposta.
Talvez agora esteja morta, num momento de reminiscência. As roupas sobram no corpo. Nada me agrada, me compõe com a fidelidade que mereço. Nem me evidenciam as curvas nem minhas intenções, meu estado de espírito.
O azul marinho com bolinhas brancas parece novo, pouquíssimo usado embora seja de meia estação, fujo dele. E corro os olhos no vermelho, no floral, no estampado quem sabe o verde, são tantos vestidos. Volto para o marinho com bolinhas brancas. Ainda serve. A última vez que o usei foi no dia de minha morte. No dia em que Otávio se foi para nunca mais. E ele queria que eu o acompanhasse para nunca mais... Não fui. Mas nunca por covardia, nunca por falta de amor. Era generosidade, Yolanda precisava de mim, Henrique precisava de mim.
Implorei a Otávio que se escondesse em minha casa, o lugar mais seguro por ser óbvio demais. Era 1974, muito perigoso para um anarquista que encabeçava a lista dos subversivos procurados, principalmente depois do episódio do banho de ovos na porta da escola de Henrique. Era uma questão de tempo. Muito pouco tempo. A polícia o queria, eu o queria, acredito que no fundo Yolanda também o queria só não sabia como, provável que tenha se esquecido.
O marinho com bolinhas brancas tem caimento perfeito, adoro o laço que se dá na gola. Pareço mais jovem. E não seja conveniente aparecer assim diante de Yolanda. não a quero humilhar com minha juventude conservada. O reumatismo consumiu-lhe a pouca beleza que restava. Os cabelos já embranqueceram-lhe ainda mais o semblante cansado. Seus olhos parecem menores embaixo de pálpebras tão empapuçadas, pouco se vêem azuis. O nariz que tanto gostava de ostentar arrebitado agora voltou-se para baixo escancarando-lhe as abas. Ficou estranho, desfigurado. Sem falar nos bicos de papagaio que lhe atrofiaram a coluna cervical, deixando-a envergada de leve.
Que me devolva apenas. O exemplar do Guimarães, que se bem me lembro tem o marcador na página final do conto que li com Otávio da última vez. O último conto do "Corpo de Baile". A última noite que o tive em mim, só para mim. Ainda sinto o cheiro da noite estrelada, brisa morna que trazia os aromas do mato molhado pela chuva do final de tarde. Chuva de verão. Final de domingo.
Otávio sempre gostou de meus cabelos presos em coque. Deixava-me mais à mostra. Dizia dos traços de meu rosto, delicados e marcantes assim como eu, controversa, dissidente de mim mesma. Yolanda às vezes me olhava. Só olhava. Como quisesse copiar-me as feições, os detalhes. Mas logo disfarçava, mudava o tema, distraía o olhar.
A sensação de que cometo um grande erro me faz recuar. Mudo a roupa, mudo o cabelo, tiro a maquilagem. Perco a coragem. Volto para o espaço das lembranças, meu refúgio. Troquei a camisola por outra limpa. Tento fechar os olhos um pouco que seja. Não, obrigada, não quero almoçar.
Deitada com as mão cruzadas na altura da barriga talvez eu durma, talvez eu morra, morta que já estou. E ao acordar esteja renascida quiçá com outro nome, outra família, outro amor e possa por fim me livrar dessa dor pungente.