segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Relatos de uma anarquista - parte 9 (O último conto)

Marc Chagall

Habito o espaço das lembranças. Sei que aqui tenho corpo, tenho alma, tenho vida, tenho Otávio ainda. Lá fora, a selva vazia de suas feras, de seus ruídos é que me amedrontam, me arrebatam. Fico no lapso, sobrevivo no lapso. Sinto-me fraca.

E da vez em que Henrique me perguntava sobre a morte, me dizia que alguém lhe tinha dito que morremos e tornamos a nascer várias vidas, diferentes nomes, diferentes famílias, diferentes amores, outras experiências. Sorri, mas nada disse. Me dava conta de que morri e nasci por diversas vezes nesta mesma vida e para isto não haveria resposta.

Talvez agora esteja morta, num momento de reminiscência. As roupas sobram no corpo. Nada me agrada, me compõe com a fidelidade que mereço. Nem me evidenciam as curvas nem minhas intenções, meu estado de espírito.

O azul marinho com bolinhas brancas parece novo, pouquíssimo usado embora seja de meia estação, fujo dele. E corro os olhos no vermelho, no floral, no estampado quem sabe o verde, são tantos vestidos. Volto para o marinho com bolinhas brancas. Ainda serve. A última vez que o usei foi no dia de minha morte. No dia em que Otávio se foi para nunca mais. E ele queria que eu o acompanhasse para nunca mais... Não fui. Mas nunca por covardia, nunca por falta de amor. Era generosidade, Yolanda precisava de mim, Henrique precisava de mim.

Implorei a Otávio que se escondesse em minha casa, o lugar mais seguro por ser óbvio demais. Era 1974, muito perigoso para um anarquista que encabeçava a lista dos subversivos procurados, principalmente depois do episódio do banho de ovos na porta da escola de Henrique.  Era uma questão de tempo. Muito pouco tempo. A polícia o queria, eu o queria, acredito que no fundo Yolanda também o queria só não sabia como, provável que tenha se esquecido.

O marinho com bolinhas brancas tem caimento perfeito, adoro o laço que se dá na gola. Pareço mais jovem. E não seja conveniente aparecer assim diante de Yolanda. não a quero humilhar com minha juventude conservada. O reumatismo consumiu-lhe a pouca beleza que restava. Os cabelos já embranqueceram-lhe ainda mais o semblante cansado. Seus olhos parecem menores embaixo de pálpebras tão empapuçadas, pouco se vêem azuis. O nariz que tanto gostava de ostentar arrebitado agora voltou-se para baixo escancarando-lhe as abas. Ficou estranho, desfigurado. Sem falar nos bicos de papagaio que lhe atrofiaram a coluna cervical, deixando-a envergada de leve.

Que me devolva apenas. O exemplar do Guimarães, que se bem me lembro tem o marcador na página final do conto que li com Otávio da última vez. O último conto do "Corpo de Baile". A última noite que o tive em mim, só para mim. Ainda sinto o cheiro da noite estrelada, brisa morna que trazia os aromas do mato molhado pela chuva do final de tarde. Chuva de verão. Final de domingo.

Otávio sempre gostou de meus cabelos presos em coque. Deixava-me mais à mostra. Dizia dos traços de meu rosto, delicados e marcantes assim como eu, controversa, dissidente de mim mesma. Yolanda às vezes me olhava. Só olhava. Como quisesse copiar-me as feições, os detalhes. Mas logo disfarçava, mudava o tema, distraía o olhar.

A sensação de que cometo um grande erro me faz recuar. Mudo a roupa, mudo o cabelo, tiro a maquilagem. Perco a coragem. Volto para o espaço das lembranças, meu refúgio. Troquei a camisola por outra limpa. Tento fechar os olhos um pouco que seja. Não, obrigada, não quero almoçar.

Deitada com as mão cruzadas na altura da barriga talvez eu durma, talvez eu morra, morta que já estou. E ao acordar esteja renascida quiçá com outro nome, outra família, outro amor e possa por fim me livrar dessa dor pungente.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Relatos de uma anarquista - parte 8 (A festa que nunca aconteceu)

Salvador Dali

O ano era 1956. Esperava-se festa grandiosa. Juscelino chegava ao poder. Meu pai, debilitado pela doença, ainda dava ares de esperança. Queria viver o que acreditava ser o recomeço de um novo final, mais justo, mais verdadeiro e porque não duradouro. Ele morreu ainda antes da posse, porque nada dura para sempre e talvez dessa forma, Seu Ângelo tenha compreendido que tratava-se apenas do último suspiro.

O ano era 1956. Eu tinha dezoito. Filha única de pai e mãe falecidos. Esperava-se festa grandiosa. Seu Alejandro, pai de Yolanda, dividido entre a dor pela morte do melhor amigo e a impossibilidade de se esquivar do sorriso insistente no rosto. Era felicidade por casar a filha com jovem anarquista tão promitente.

O ano era 1956. Otávio tinha vinte e quatro. Formado no curso de história, era pesquisador da universidade. Na época estudava a imigração italiana no Brasil em seus primórdios, procurava vestígios de seus ascendentes anarquistas. Escrevia seu único livro, até onde sei, inacabado.

E chegava ao cartório, pontual. Vinha de táxi. Como chegasse ao velório de um ente querido, Otávio caminhava respeitoso ao aproximar-se da viúva. Com voz baixa talvez para omití-la embargada expressava suas sinceras condolências. Foi o "sim"que não ouvi e duvido que Yolanda o tenha.

O ano era 1956. Yolanda carregava Henrique no ventre. Feto, desafeto, miúdo, semente. Ela vestia uma túnica, que disfarçava o corpo que se deformava, com aplicação de bordados na gola e nas mangas. Corte da moda, mas nada de branco. Beige. Yolanda nunca se submeteria aos regimentos de religião que fosse. Foram direto ao finalmente. Ela dispensou o beijo tradicional dos noivos após a troca das alianças. Assinou o papel. Ainda teve tempo para me dar um abraço de melhores amigas, um beijo áspero na face. De braços dados, ela e Otávio faziam o caminho de volta até a porta do cartório onde o táxi que o trouxera ainda aguardava. Nele embarcaram sem olhar para atrás, partiram.

Os poucos convidados que ali estavam, restaram de pé como expectatdores a espera do final do espetáculo, do retorno dos artistas ao palco para última salva de aplausos. Mas a festa nunca aconteceu. O velho Alejandro na tentativa de sustentar o clima de celebração, jogava conversas despropositadas sem fixar-se no que dizia. A persistência do velho me comovia. Eram as gotas de suor precipitando na testa e nas têmporas. Sua segunda esposa, de tempo em tempo oferecia-lhe um lencinho para que pudesse se recompor, cada vez mais molhado e desequilibrado. Yolanda era filha de madrasta e ao que parece, de convívio atribulado. Fosse tudo aquilo por ódio daquela mulher que ocupava o lugar de sua mãe? Ninguém entendia.

Mas eu sim. Sabia o que passava na cabeça de Yolanda. Tripudiar-me em tom vitorioso. Desfilava Otávio como troféu. Carregava em seu ventre, o fruto dessa vitória. Enquanto que a mim caberia a resignação, o papel de madrinha desse grande feito. Para sempre sua coadjuvante.

Trinta anos se passaram. É apenas segunda-feira, 1986. A chuva deu uma trégua. O presidente eleito é morto com as esperanças de meu pai que ainda pairavam por aqui, nos restou um vice. A dor que sinto, sinto. não é pelo talho em minha mão que às vezes ainda sangra, não é pelo tempo que passou, nem pelo tempo que vivo. Tenho a impessão de que me atropelam pensamentos. Instinto de sobrevivência que não me deixa dormir um pouco que seja, é no banho que busco equilíbrio para depois encarar Yolanda.

Devolvo o diário, não justifico. Cordata, peço meu Guimarães de volta. Não haverá ganhador. Não haverá perdedor.

sábado, 27 de novembro de 2010

Relatos de uma anarquista - parte 7 (Espelho, espelho meu...)

Anita Malfatti

O encontro na escola foi casual. Tenho consciência tranquila. Otávio voltar para mim, era o destino que se fazia cumprir. Yolanda nada poderia fazer.

Minha camisola suja de sangue, joguei na cama,  no lado que Otávio ocupava quando aqui dormia. Tenho consciência tranquila. Mas o que me tira de prumo em tudo isso, é essa falta de ritmo. Não tem cadência como as palavras no texto de Yolanda.

Se o leio nua, em frente ao espelho, é para decifrar entrelinhas. Sei que é dali que flui musicalidade. Yolanda é abusada, não tem pudores do erro. É vingativa, maliciosa. Talvez seja esse seu segredo.

Ela nunca escreve de amor. Ela nunca falou de amor com Otávio. Tantas vezes o ouvi reclamar de sua frieza, de sua ausência de espírito. Me dizia tudo, enquanto afagava seus cabelos castanhos, deitado ao meu lado.

Eu o amparava. Supria sua necessidade de amor. Depois líamos um conto do Guimarães. Como eu, Otávio gostava de sua linguagem regionalista e desconstruída falando do universal... E inebriados por Guimarães conversávamos até o amanhecer.

Mas a maldade e o despeito de Yolanda não ficam restritos aos textos, as palavras. Um belo dia, tirou Otávio de mim para sempre. Carregou minha única boa lembrança, o meu exemplar do Guimarães, e o trancou em sua preciosa biblioteca.

Resto nua, em frente ao espelho, lendo seus textos torpes e bem escritos. Não bastasse isso, descubro que ela tem mais ritmo do que eu, mais vida do que eu, quiçá um corpo mais bonito do que o meu. 

E se agora eu perguntasse ao espelho, seria eu a madrasta má e ela a doce princesa?! Isso seria ridículo. Seria pequeno. Seria injusto.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Relatos de uma anarquista parte 6 (Era Otávio de volta)

Pablo Picasso

Segunda-feira de um dia longínquo, mas que me surge entre lembranças recentes, como papéis antigos que se perdem por aí e que são encontrados sem pretensão alguma, muito tempo depois.

Segunda-feira chuvosa. Mas eram ovadas que ensopavam os cabelos castanhos de Otávio. Depois de séculos sem notícias suas! Eu via Otávio entre gosmas e cascas que lhe escorriam pelo colarinho, terno abaixo. Como chuva fina que passa impermeável no tecido, e se amontoa em gotículas que não se desfazem, insistentes.

Na porta de tradicional colégio de São Paulo, Otávio aguardava a saída do filho. Queria vê-lo crescido, tentar uma reaproximação. Vivia clandestino em alguma cidade do interior desde que deixara Henrique, ainda bebê. Ele que já nem mais era membro ativo do movimento, teve o nome marcado quando da morte de um importante empresário da indústria têxtil alguns anos atrás. Noticiado nos jornais, Otávio tinha se tornado figura conhecida e non grata. Embora nunca tivesse se envolvido em violência ou atos de vandalismo, não foi ouvido. Não lhe foi dada  chance para defesa.

Na política, Otávio foi simpatizante do partido. Mas isso tinha sido antes dos campos de concentração de Stalin. Antes dos ideais suplantados pelo poder e ganância. Tornara-se professor de história. Um professor itinerante para sempre perseguido. Para sempre fugitivo. Por isso estaria ali, somente aquele dia.

Quando cheguei, o reconheci, tentava proteger-se com as mãos nuas, ora o corpo, ora o rosto. Inútil, pacífico. Eram ovadas preconceituosas, maledicentes. Ovos que carregavam dentro de si clara, gema e ignorância. Radicais direitistas atiravam ovos, desferiam ofensas, "anarquistas malditos", diziam os pedantocratas baderneiros, intolerantes deles mesmos.

Não me surpreendia tanta hostilidade, que já havia dado mostras nos boicotes e ameaças veladas, que Henrique sofria diariamente. E o colégio sempre esquivo, sofrendo da cegueira indecorosa típica dos consentidos. Eram incultura e repugnância que até então vinham embebidas na açucarada hipocrisia.

Pais dos delinquentes assistiam ao show, calados, como mandantes selvagens e sádicos. Porque via neles um prazer mórbido. Pessoas que se divertiam a humilhar outra, em nome da falsa sensação de poder. Ali não havia noções ou limites, eles eram pura expressão de ódio e frustração.

Eu, enlouquecida, entrava no colégio em busca de ajuda, explicações, punição severa, mas encontrava Henrique escondido atrás da mureta do jardim, no pátio central. É provável que tenha visto o momento do ataque, reconhecido o pai e fugido da humilhação. Pobre covarde. Seus colegas estavam certos. Ele era covarde. E pela primeira vez percebia toda a inexistência de Henrique, aos quinze anos de idade.

Os ovos cessavam. A multidão que passiva assistia, dispersava-se. A chuva apertava. Otávio continuava imóvel, inabalável no espírito, perplexo. Ainda me parecia tão lindo embora um pouco envelhecido. Eu o abracei. Nada disse. O cheiro do ovo, o odor das vinganças que não valiam à pena. Éramos anarquistas na alma, no olhar que tínhamos sobre o mundo, a humanidade. E ninguém nos tiraria esse privilégio. Tratava-se de uma herança cultural que nunca deixamos de acreditar, ainda que banhados em ovos, ainda que separados por Yolanda. Eu amava Otávio tanto quanto amava o anarquismo. Tanto quanto, hoje, admiro Guimarães, meu anarquista das palavras.

Os abriguei em minha casa. Emprestei roupas e a colônia preferida de meu falecido pai, para que Otávio pudesse se lavar e trocar o terno alvejado. Lhe indiquei o banheiro da suite, que ele já conhecia tão bem. Fui cuidar de Henrique, trocar-lhe as calças urinadas. Tantas vezes troquei suas fraldas quando pequeno. Agora eu o ajudava a se banhar, esfregava suas costas na tentativa de decifrar alguma vida dentro daquele corpo magro, de ombros murchos.

Conversei com Henrique. Que seu pai não havia reagido por conta de preservá-lo. O filho tão amado. Se reaparecia somente agora não era com propósito de causar confusões, era saudade. Vontade de recuperar um tempo, uma felicidade. Assim como ele, o pai sofria perseguições. Por amar e lutar por um ideal. Disse a Henrique que os preconceitos nada mais eram que formas intolerantes de expressão, apenas isso.

Ainda vivíamos em tempos difíceis. Não como de meu pai perseguido pelo Estado novo. La guerra era finita havia muito, mas era ainda um momento delicado para expressar certas ideias. Tínhamos um governo que nos arrancava a liberdade à pretextos paternalistas e de ordem, e que mascaravam ditadura cruel, cheia de egos e vaidades...

Henrique me olhava nos olhos mas nada apreendia. Estava distante a ponto de que se eu lhe estendesse meus braços, não poderia alcançá-lo. Ele estava no fundo, no escuro ou nem lá estivesse mais. Era desesperador porque me pedia ajuda, fosse talvez apenas o eco de minha própria voz. Mas era a campainha. Yolanda.

Das expressões do rosto de Yolanda, conheço todas. Os olhos arregalados que nunca eram de espanto. Os vincos na testa desmerecendo argumentos. A boca que de semi aberta se apertava entre os dentes como que querendo ocultar suas reais intenções, o que lhe repuxava e torcia de leve o nariz, talvez nojo de uma humanidade que julgava inferior e imperfeita. Yolanda não precisava das palavras, nunca precisou. Quanta incoerência!

Vindo de Yolanda! Entrava sem pedir licença. Invasiva como de costume, procurava Henrique que já estava banhado e trocado, descansava no sofá. Alguém lhe deve ter relatado o episódio, já que ela nem teve a decência de aparecer antes. Sua demonstração de compreensão foram dois tapinhas de leve na mão do filho que se levantava imediatamente como um robô a que se dá um comando.

Otávio já refeito e perfumado, aparecia no alto da escada. Não esperava ver Yolanda. Para ela não havia surpresas. Inexpressiva e serena lhe oferecia o braço desocupado. Ele veio ao seu encontro. Yolanda ainda teve tempo para esticar olhos para meu exemplar do Guimarães. Estava na mesinha onde hoje habita seu diário. Entortou a cabeça, identificou o título. Não se despediu, não agradeceu. Não fechou a porta. Com ares altivos, vinha tomar posse do que nunca foi seu.

Segunda-feira chuvosa. E fico admirada por estar a estas horas, ainda em frente ao espelho. Com a camisola que não dormi. É minha mão que acabei ferindo ao recolher os cacos no chão da cozinha. Manchou de sangue a camisola, sujou meu rosto. Mas não sinto dor. Não sinto nada.


domingo, 31 de outubro de 2010

Relatos de uma anarquista - parte 5 (Uma Valsa Vienense)

Gustave Kimt
Sinto que perdi o compasso. E era minha valsa que tocava. Minha vez. É o dia que se refaz sem ensejos de arrependimento, acostumado à rotina. Não velei noite, sequer levantei de minha poltrona. Na lareira, os restos mortais da lenha, que me queimaram pensamentos noite a dentro. Depois Henrique, em sua embriaguez sutil e incorporada. É que minhas palavras pouco sentido fazem depois de noite insone alimentando revanches.

O diário de Yolanda continua ali, inerte, irritante, me perdendo... É a chaleira que apita. A xícara que escorrega da mesa. É o segundo que antecede a queda. É nele que me concentro, capaz de prever mas não de evitar. Só me resta recolher os cacos no chão enquanto a água que ebuli, expande, transborda pelo fogão.

Da minha cozinha a casa de Yolanda parece menor que de costume, embora saiba que sua área construída seja bem maior. Ela sempre fez questão de frisar seu quintal maior e mais florido do que o meu, sua sala de música que acomodava piano de cauda, enquanto que a minha era apenas um espaço na estante para uma vitrola antiga, ali mesmo na sala de estar. Nunca me importei com nada disso, até agora.

Vejo Yolanda abrindo cortinas da janela de seu quarto e fico confusa porque há muito que ela já não chega mais junto às janelas, menos ainda permite que a luz entre em sua casa. Yolanda parece rejuvenescida como no tempo de Henrique bebê, como no tempo em que Otávio foi meu. E no lapso o vejo parado, atrás dela. Ele me olha. Sempre olhou para mim.

Era meu aniversário, nem sei mais quantos anos fazia, vinte, vinte e um talvez. Otávio veio me presentear, "mas guarde longe dos olhos de Yolanda. Te trouxe um exemplar do Guimarães. São contos." Ele sorriu, me inundando os sentidos.

São as lembranças que agora vagueiam entre o distante e o instante em que o convidei a entrar, provar do vinho que acabava de abrir. "É tinto." Era o mesmo tinto que meu pai bebia em todas as comemorações, entre anarquistas. Às vezes até nos aniversários da família para acompanhar o cordeiro que assava no forno, especialidade de mamãe. Mas isso tinha sido em outros tempos. O saboreava sem acompanhamentos, solitário como eu.

Otávio hesitou, procurou convidados por entre frestas. Me olhou consternado. "Minha bela Antonella, sempre sozinha." Embora soubesse que para mim era apenas um estúpido aniversário, nada mais. Brindamos. "Mas só bebo uma taça, que Yolanda pode me notar ausente."

Na vitrola tocava uma valsa vienense, minha preferida desde pequena, quando sonhava rodopiar pelos grandes salões de antigamente, nos braços de um homem encantador. "Me concede esta dança?" Otávio me adivinhava desejos com tanta doçura. Dançamos entre mobílias. Brindamos tantas vezes naquele começo de noite. Rimos, relembramos juventude. Embebedados pelo tinto, ele me fez corar ao confessar que sabia de minha paixão adolescente por ele. Que das vezes em que discursou na sala de meu pai, notava o brilho em meus olhos e por isso os evitava, era medo de tropeçar nas palavras.

Me beijou. Ali mesmo de pé perto da mesa de jantar. Disse que deixaria Yolanda. Não me surpreendi, também não acreditei. Sabia de seu amor e preocupação com o pequenino Henrique. Não disse nada. Não me neguei a nada. Deixei que os ventos nos carregassem ao destino que já aguardava há tempo. Nosso destino. Nosso momento.

Minha Valsa Vienense. Mas é engraçado porque sinto que perdi o compasso e dele me exilei. É o chá quente que me queima os lábios e me faz curiosa. Em pé na cozinha recostada à pia, olhando para a janela do quarto de Yolanda, imagino se ela já estaria de pé.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Relatos de uma anarquista - parte 4 (Henrique)

Cezanne

Ouço os passos de Henrique, inolentes, pela calçada amorfa e silenciosa. Para chegar à porta de Yolanda, costuma atravessar-me o jardim de casa. É que ele prefere a porta dos fundos, embora saiba que a mãe por nada acordaria, dopada de remédios. E saiba ainda que se nem voltasse no outro dia e no outro, seria difícil que ela o notasse ausente. Há muito que não se importa com o rapaz. Desde que o pai se foi.

Henrique de andar arrastado ampara os ombros descaídos no pouco que lhe resta de existência. É tristura de alma.

E pensar que o tive em meus braços, antes que Yolanda! Era tão pequenino e indefeso, e vi nele tanto de mim! Meus olhos amendoados! Era Otávio no feitio, com os meus olhos. Por um instante cheguei pensar que aquele bebê fosse meu, meu! E saído do ventre de Yolanda! Que sina! Naquela época me parecia uma loucura provável. Às vezes ainda penso que talvez...

Yolanda! Tão desnaturada! E todas as noites que eu amanhecia em sua casa com Henrique nos braços? O afagava, o acalmava, cantarolava musiquinhas, o fazia dormir. Por vezes pressentia Otávio que me espionava do corredor. Ele sabia que Yolanda não seria capaz de benevolências. Nunca perdeu noites insone para acudir o bebê. Ainda que fosse para protegê-lo do frio.

E quando maiorzinho, era eu quem  buscava Henrique na escola por conta das brigas em que se envolvia. Era perseguido por alguns colegas por ser filho de anarquista. Perseguido como o pai! E a diretora me chamava: "É a mãe?"Sim , eu era a mãe dele! Legitimada pelo amor que lhe dedicava. Éramos uma família linda! Eu, Henrique e Otávio...

Mas aí, Yolanda! Acabrunhada, uma pedra que feria o dedo mindinho à carne viva. Sempre desgostosa de si, imperfeita! Me impressiona a imperfeição de Yolanda! Sua capacidade insana de questionar e lamentar por tudo. Yolanda escolheu a clausura de seus pensamentos. Foi ela quem primeiro abandonou Otávio, o atirou em meus braços e o enviou para a morte e por isso eu a desprezo.

Sinto compaixão por Henrique, pobre diabo que carrega da mãe o mesmo semblante obscuro, irremediável. Vejo seu vulto passar rápido por minha janela. Está embriagado, caminha inexistido. É o dia invadindo a escuridão.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Relatos de uma anarquista - parte3 (O diário)

Renoir

Se insisto nas páginas do diário de Yolanda, é por displicência. Pela frustração de não ter Guimarães em minhas mãos. Abro uma página. Yolanda também o lê. Por certo que o título que eu procurava, habita sua mesinha de cabeceira ao lado da cama. Bem perto de seus pensamentos. E assim não o encontrei.

Ela reescreve Guimarães! Segue seus passos, Seu raciocínio. Reconstrói frases, reinventa palavras. Quanta pretensão!

O que me irrita em Yolanda é essa esperança de que tudo possa ser diferente. De que sempre haverá uma escapatória. Ela gosta dos meus gostos com mais paixão que eu e ama meus homens com mais paixão que eu e idealiza meus ideais com mais paixão que eu.

Não sabia que Yolanda era dada aos infanto juvenis! São tantos textos... E se agora eu os roubasse para mim, não cometeria crime algum. Tantas vezes fui usurpada por ela sem nada reclamar.

Foi assim quando conhecemos Otávio. Na sala de estar, na casa de minha família. Final de semana em que reuníamos anarquistas para o almoço, regado a muita ópera, discursos e poesia. Era a primeira vez que Yolanda ia. Acompanhava o pai. Ela tinha treze anos. Me lembro bem porque a ocasião era especial, aniversário de morte de Sacco a Venzetti.

Ela, em um vestido que levava a cor de seus olhos. Eu tinha doze. Mais bonita do que ela. Mais inteligente e esperta do que ela. Mas depois que Yolanda colocou os pés em minha vida, perdi meu repertório, empobreci na alma, fiquei sem alternativas. Passei a ser sua sombra. Fui subtraída de mim mesma sem nada poder fazer.

E o Otávio? Anarquista no alto de seus dezoito anos. Lindo! Discursava na sala de estar quando me apaixonei por ele. Meu primeiro amor platônico. Mas o primeiro beijo foi de Yolanda assim como a primeira noite de amor e o primeiro e único filho.

Sempre fomos amigas. É que Yolanda é insegura, precisa do meu apoio. Eu a apoio, sempre relevando suas arbitrariedades. Foi assim com a poesia , foi assim com a anarquia, foi assim com Otávio. Mas não vou permitir que me tire Guimarães, nunca!

Não casei para cuidar do casamento malfadado de Yolanda. Otávio a deixou com Henrique ainda pendurado em seus peitos. Depois vieram as primeiras dores do reumatismo. Mas a biblioteca que foi minha em alguma outra vida, essa ela nunca me deixou cuidar.

Chego a pensar que desde o início ela sabia de meu plano, talvez até mesmo sobre a chave cópia que fiz. Sabia de minha admiração por Guimarães e de acinte o retirou da biblioteca, substituindo-o por seu diário. Al piacere de me aguçar curiosidade, despeito, inveja. Queria que eu a soubesse escritora.

Aos diabos com este diário! Se não o atiro às labaredas que pipocam da lareira, é por pura displicência.