domingo, 12 de dezembro de 2010

Relatos de uma anarquista - parte 8 (A festa que nunca aconteceu)

Salvador Dali

O ano era 1956. Esperava-se festa grandiosa. Juscelino chegava ao poder. Meu pai, debilitado pela doença, ainda dava ares de esperança. Queria viver o que acreditava ser o recomeço de um novo final, mais justo, mais verdadeiro e porque não duradouro. Ele morreu ainda antes da posse, porque nada dura para sempre e talvez dessa forma, Seu Ângelo tenha compreendido que tratava-se apenas do último suspiro.

O ano era 1956. Eu tinha dezoito. Filha única de pai e mãe falecidos. Esperava-se festa grandiosa. Seu Alejandro, pai de Yolanda, dividido entre a dor pela morte do melhor amigo e a impossibilidade de se esquivar do sorriso insistente no rosto. Era felicidade por casar a filha com jovem anarquista tão promitente.

O ano era 1956. Otávio tinha vinte e quatro. Formado no curso de história, era pesquisador da universidade. Na época estudava a imigração italiana no Brasil em seus primórdios, procurava vestígios de seus ascendentes anarquistas. Escrevia seu único livro, até onde sei, inacabado.

E chegava ao cartório, pontual. Vinha de táxi. Como chegasse ao velório de um ente querido, Otávio caminhava respeitoso ao aproximar-se da viúva. Com voz baixa talvez para omití-la embargada expressava suas sinceras condolências. Foi o "sim"que não ouvi e duvido que Yolanda o tenha.

O ano era 1956. Yolanda carregava Henrique no ventre. Feto, desafeto, miúdo, semente. Ela vestia uma túnica, que disfarçava o corpo que se deformava, com aplicação de bordados na gola e nas mangas. Corte da moda, mas nada de branco. Beige. Yolanda nunca se submeteria aos regimentos de religião que fosse. Foram direto ao finalmente. Ela dispensou o beijo tradicional dos noivos após a troca das alianças. Assinou o papel. Ainda teve tempo para me dar um abraço de melhores amigas, um beijo áspero na face. De braços dados, ela e Otávio faziam o caminho de volta até a porta do cartório onde o táxi que o trouxera ainda aguardava. Nele embarcaram sem olhar para atrás, partiram.

Os poucos convidados que ali estavam, restaram de pé como expectatdores a espera do final do espetáculo, do retorno dos artistas ao palco para última salva de aplausos. Mas a festa nunca aconteceu. O velho Alejandro na tentativa de sustentar o clima de celebração, jogava conversas despropositadas sem fixar-se no que dizia. A persistência do velho me comovia. Eram as gotas de suor precipitando na testa e nas têmporas. Sua segunda esposa, de tempo em tempo oferecia-lhe um lencinho para que pudesse se recompor, cada vez mais molhado e desequilibrado. Yolanda era filha de madrasta e ao que parece, de convívio atribulado. Fosse tudo aquilo por ódio daquela mulher que ocupava o lugar de sua mãe? Ninguém entendia.

Mas eu sim. Sabia o que passava na cabeça de Yolanda. Tripudiar-me em tom vitorioso. Desfilava Otávio como troféu. Carregava em seu ventre, o fruto dessa vitória. Enquanto que a mim caberia a resignação, o papel de madrinha desse grande feito. Para sempre sua coadjuvante.

Trinta anos se passaram. É apenas segunda-feira, 1986. A chuva deu uma trégua. O presidente eleito é morto com as esperanças de meu pai que ainda pairavam por aqui, nos restou um vice. A dor que sinto, sinto. não é pelo talho em minha mão que às vezes ainda sangra, não é pelo tempo que passou, nem pelo tempo que vivo. Tenho a impessão de que me atropelam pensamentos. Instinto de sobrevivência que não me deixa dormir um pouco que seja, é no banho que busco equilíbrio para depois encarar Yolanda.

Devolvo o diário, não justifico. Cordata, peço meu Guimarães de volta. Não haverá ganhador. Não haverá perdedor.

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