sábado, 30 de dezembro de 2023

Um causo real





Trata-se de uma história real que melhor ficaria se fosse um causo. Uma ficção para os mais incrédulos, e verdade verdadeira para aqueles que sabem da vastidão desse universo e que dele nada não entendemos além dessa nossa mente falastrona que cria e descria a mando do tal do ego.


Então me embrulho de uma fala que não é muito minha natureza, mas que se apresenta agora despudorada e sem razão de ser, para contar do desacontecido. Assim: estava eu, que sou pessoa mergulhada nos segredos do cosmo, em plena meditação, na solidão do meu quarto, quando se deu a comunicação que a princípio desconfiei ser um engodo da mente, mas que logo se revelou algo além do mundo carnal já que era dia e eu nem com sono estava. Era ele, o meu avô morto lá no início do século XXI, escritor conhecido mundialmente, reconhecido por suas personagens inesquecíveis e incansáveis de guerra entre cravos e canelas, e que agora se revelava esse ser espiritual poderosíssimo à minha frente, que fazia jus ao nome: de armadura, montado no cavalo e junto dele um exército de meninos capitães. Vinham eles no formato de flecha, sendo meu avô a ponta, se aproximavam de mim. Eles estavam ali logo à beira da cama, ou fosse eu que tivesse sido transportada para algum lugar, que sim que não, eu me mantinha firme na coragem da situação.


Pois é, eu que sempre admirei sua literatura, mas que nunca naveguei nas águas cheias de misticismos e orixás que eram seu oceano particular, estava diante da verdade por detrás daquela sua última existência terrena. Entendi a força que ele carregou a vida toda, a força que tinha cada romance seu, claro que ele tinha nascido para brilhar, e espalhar seu conhecimento, aquela Bahia de todos os santos que o mundo precisava conhecer e respeitar. A sensação de estar diante dele era intensa.


Ele me explicou tudo. Do imbróglio dos nossos antepassados, desse embrulha e desembrulha onde nossas famílias foram se entremeando, de um amarrio complicado, de correntes que a gente ainda arrasta nessa existência. E tudo se aclarava, era a impressão de que eu inclusive já sabia daquilo só não tinha me dado conta. Ele me disse que eu já tinha sido perdoada por seu povo antepassado, do qual ele era o protetor, mas é que de pronto não compreendi aquelas palavras, aí me veio à mente uns desacontecimentos recentes nos meus tratamentos holísticos. "Ah tá!", eu pensei na sequência. Aí foi que a coisa fez sentido mesmo, e eu senti o abraço e o carinho daquela meninada, quanto amor por eles! 


A gente não tem ideia de que a família dessa vida não é por acaso, se soubesse talvez perdesse menos tempo se digladiando. Mesmo assim eu pedi perdão, também pude perdoar a minha ignorância e a dos outros que talvez não tenham ideia de como tudo sucede nesse universo. Também perdoei os meninos capitães que me perseguiram durante tempos, me aporrinharam o sono, me brotaram os maiores terrores na escuridão da noite. Eles disseram que tudo foi missão dada, não foi coisa natural. Disseram dos encarnados, mandantes, que de mim contaram tantas patranhas e maledicências que só quando eles sentiram de perto o amor e a luz que me derramava do coração é que eles enxergaram, de quem era a mentira. Contaram que lá voltaram para tirar as devidas satisfações, mas eu pedi que não. Não fizessem isso por que afinal a ignorância é dádiva, e dádiva isenta culpa, não carma, mas culpa. 


Foi quando meu avô tocou no ponto nevrálgico dessa nossa existência, ele me explicou da justiça universal, falou que dela eu era merecedora, todos são, para o bem ou para o mal. Disse ainda que essa justiça é determinada pela necessidade do equilíbrio do universo, mais ou menos assim: o peso do dia que faz o contrapeso que segura a noite. Uma gangorra mesmo, que não pode pender nem para cá nem para lá. Mas como o homem é tomado pela ignorância que anuvia a mente, angustia o peito e cega as vistas, ele insiste que pode fazer justiça com as próprias mãos. Que pode saber do justo e do injusto. Nada disso. Pobre de nós que vivemos dos engodos que escolhemos viver.


Aí foi a vez de falar da minha literatura. Assim: livre. Pois é, ele disse que eu era livre, de palavras livres e que as usasse sem receio. Que contasse as histórias que eu quisesse contar, mesmo dele, mesmo da vó. Disse que a vó me amava, mas disso eu já sabia porque ela, eu já tinha encontrado tantas vezes. Que soubesse, que dele, eu não tivesse dúvida da estima e do respeito. "Só não estou mais tempo ao seu lado porque ela precisa de mim." Da dita pessoa eu não digo o nome, não. Ele me pediu para amá-la, que meu amor poderia ajudá-la ainda que ela não soubesse, ainda que ela rejeitasse. Eu já amava mesmo. Nunca deixei de fazê-lo, simplesmente era mais forte do que eu, do que meu orgulho. Eu a amava só de amor, só de admirar seu talento, seu carisma, mas é que ela andava e anda doente da alma, e meu avô disse que dela, ele cuidará sempre até o último suspiro.


Ele disse para ter paciência que tudo se resolve porque lá já está, que eu não questionasse mais a justiça universal e parasse de vez de controlar as palavras da minha literatura, porque sem liberdade não existe literatura. Aí foi a minha vez de pedir para que ele me protegesse com sua força de guerreiro e com a força de seus orixás. Ele disse que já fazia isso, mas o milagre estava no meu passo, e que portanto eu vivesse mais de viver e menos de me lamentar. Me garantiu que se passasse a vida ensaiando não seria na morte minha estreia. Só fiquei calada, de ouvir cada verdade esbofeteando-me o rosto, o centro da testa gelado como o quê, o topo da cabeça de arrepio em arrepio, até que tudo se dissolveu como fosse ali uma fantasmagoria, e eu agora entendida de toda realidade mas sem saber por onde começar.


Se sim se não, foi assim que a coisa se sucedeu, voltei a mim lavada pelas lágrimas, querendo contar com provas o que me tinha sucedido, mas a feita era incerta, improvável, É por isso que trago fatos desnarrados que é para não cismar compromisso com quer que seja.