sábado, 27 de novembro de 2010

Relatos de uma anarquista - parte 7 (Espelho, espelho meu...)

Anita Malfatti

O encontro na escola foi casual. Tenho consciência tranquila. Otávio voltar para mim, era o destino que se fazia cumprir. Yolanda nada poderia fazer.

Minha camisola suja de sangue, joguei na cama,  no lado que Otávio ocupava quando aqui dormia. Tenho consciência tranquila. Mas o que me tira de prumo em tudo isso, é essa falta de ritmo. Não tem cadência como as palavras no texto de Yolanda.

Se o leio nua, em frente ao espelho, é para decifrar entrelinhas. Sei que é dali que flui musicalidade. Yolanda é abusada, não tem pudores do erro. É vingativa, maliciosa. Talvez seja esse seu segredo.

Ela nunca escreve de amor. Ela nunca falou de amor com Otávio. Tantas vezes o ouvi reclamar de sua frieza, de sua ausência de espírito. Me dizia tudo, enquanto afagava seus cabelos castanhos, deitado ao meu lado.

Eu o amparava. Supria sua necessidade de amor. Depois líamos um conto do Guimarães. Como eu, Otávio gostava de sua linguagem regionalista e desconstruída falando do universal... E inebriados por Guimarães conversávamos até o amanhecer.

Mas a maldade e o despeito de Yolanda não ficam restritos aos textos, as palavras. Um belo dia, tirou Otávio de mim para sempre. Carregou minha única boa lembrança, o meu exemplar do Guimarães, e o trancou em sua preciosa biblioteca.

Resto nua, em frente ao espelho, lendo seus textos torpes e bem escritos. Não bastasse isso, descubro que ela tem mais ritmo do que eu, mais vida do que eu, quiçá um corpo mais bonito do que o meu. 

E se agora eu perguntasse ao espelho, seria eu a madrasta má e ela a doce princesa?! Isso seria ridículo. Seria pequeno. Seria injusto.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Relatos de uma anarquista parte 6 (Era Otávio de volta)

Pablo Picasso

Segunda-feira de um dia longínquo, mas que me surge entre lembranças recentes, como papéis antigos que se perdem por aí e que são encontrados sem pretensão alguma, muito tempo depois.

Segunda-feira chuvosa. Mas eram ovadas que ensopavam os cabelos castanhos de Otávio. Depois de séculos sem notícias suas! Eu via Otávio entre gosmas e cascas que lhe escorriam pelo colarinho, terno abaixo. Como chuva fina que passa impermeável no tecido, e se amontoa em gotículas que não se desfazem, insistentes.

Na porta de tradicional colégio de São Paulo, Otávio aguardava a saída do filho. Queria vê-lo crescido, tentar uma reaproximação. Vivia clandestino em alguma cidade do interior desde que deixara Henrique, ainda bebê. Ele que já nem mais era membro ativo do movimento, teve o nome marcado quando da morte de um importante empresário da indústria têxtil alguns anos atrás. Noticiado nos jornais, Otávio tinha se tornado figura conhecida e non grata. Embora nunca tivesse se envolvido em violência ou atos de vandalismo, não foi ouvido. Não lhe foi dada  chance para defesa.

Na política, Otávio foi simpatizante do partido. Mas isso tinha sido antes dos campos de concentração de Stalin. Antes dos ideais suplantados pelo poder e ganância. Tornara-se professor de história. Um professor itinerante para sempre perseguido. Para sempre fugitivo. Por isso estaria ali, somente aquele dia.

Quando cheguei, o reconheci, tentava proteger-se com as mãos nuas, ora o corpo, ora o rosto. Inútil, pacífico. Eram ovadas preconceituosas, maledicentes. Ovos que carregavam dentro de si clara, gema e ignorância. Radicais direitistas atiravam ovos, desferiam ofensas, "anarquistas malditos", diziam os pedantocratas baderneiros, intolerantes deles mesmos.

Não me surpreendia tanta hostilidade, que já havia dado mostras nos boicotes e ameaças veladas, que Henrique sofria diariamente. E o colégio sempre esquivo, sofrendo da cegueira indecorosa típica dos consentidos. Eram incultura e repugnância que até então vinham embebidas na açucarada hipocrisia.

Pais dos delinquentes assistiam ao show, calados, como mandantes selvagens e sádicos. Porque via neles um prazer mórbido. Pessoas que se divertiam a humilhar outra, em nome da falsa sensação de poder. Ali não havia noções ou limites, eles eram pura expressão de ódio e frustração.

Eu, enlouquecida, entrava no colégio em busca de ajuda, explicações, punição severa, mas encontrava Henrique escondido atrás da mureta do jardim, no pátio central. É provável que tenha visto o momento do ataque, reconhecido o pai e fugido da humilhação. Pobre covarde. Seus colegas estavam certos. Ele era covarde. E pela primeira vez percebia toda a inexistência de Henrique, aos quinze anos de idade.

Os ovos cessavam. A multidão que passiva assistia, dispersava-se. A chuva apertava. Otávio continuava imóvel, inabalável no espírito, perplexo. Ainda me parecia tão lindo embora um pouco envelhecido. Eu o abracei. Nada disse. O cheiro do ovo, o odor das vinganças que não valiam à pena. Éramos anarquistas na alma, no olhar que tínhamos sobre o mundo, a humanidade. E ninguém nos tiraria esse privilégio. Tratava-se de uma herança cultural que nunca deixamos de acreditar, ainda que banhados em ovos, ainda que separados por Yolanda. Eu amava Otávio tanto quanto amava o anarquismo. Tanto quanto, hoje, admiro Guimarães, meu anarquista das palavras.

Os abriguei em minha casa. Emprestei roupas e a colônia preferida de meu falecido pai, para que Otávio pudesse se lavar e trocar o terno alvejado. Lhe indiquei o banheiro da suite, que ele já conhecia tão bem. Fui cuidar de Henrique, trocar-lhe as calças urinadas. Tantas vezes troquei suas fraldas quando pequeno. Agora eu o ajudava a se banhar, esfregava suas costas na tentativa de decifrar alguma vida dentro daquele corpo magro, de ombros murchos.

Conversei com Henrique. Que seu pai não havia reagido por conta de preservá-lo. O filho tão amado. Se reaparecia somente agora não era com propósito de causar confusões, era saudade. Vontade de recuperar um tempo, uma felicidade. Assim como ele, o pai sofria perseguições. Por amar e lutar por um ideal. Disse a Henrique que os preconceitos nada mais eram que formas intolerantes de expressão, apenas isso.

Ainda vivíamos em tempos difíceis. Não como de meu pai perseguido pelo Estado novo. La guerra era finita havia muito, mas era ainda um momento delicado para expressar certas ideias. Tínhamos um governo que nos arrancava a liberdade à pretextos paternalistas e de ordem, e que mascaravam ditadura cruel, cheia de egos e vaidades...

Henrique me olhava nos olhos mas nada apreendia. Estava distante a ponto de que se eu lhe estendesse meus braços, não poderia alcançá-lo. Ele estava no fundo, no escuro ou nem lá estivesse mais. Era desesperador porque me pedia ajuda, fosse talvez apenas o eco de minha própria voz. Mas era a campainha. Yolanda.

Das expressões do rosto de Yolanda, conheço todas. Os olhos arregalados que nunca eram de espanto. Os vincos na testa desmerecendo argumentos. A boca que de semi aberta se apertava entre os dentes como que querendo ocultar suas reais intenções, o que lhe repuxava e torcia de leve o nariz, talvez nojo de uma humanidade que julgava inferior e imperfeita. Yolanda não precisava das palavras, nunca precisou. Quanta incoerência!

Vindo de Yolanda! Entrava sem pedir licença. Invasiva como de costume, procurava Henrique que já estava banhado e trocado, descansava no sofá. Alguém lhe deve ter relatado o episódio, já que ela nem teve a decência de aparecer antes. Sua demonstração de compreensão foram dois tapinhas de leve na mão do filho que se levantava imediatamente como um robô a que se dá um comando.

Otávio já refeito e perfumado, aparecia no alto da escada. Não esperava ver Yolanda. Para ela não havia surpresas. Inexpressiva e serena lhe oferecia o braço desocupado. Ele veio ao seu encontro. Yolanda ainda teve tempo para esticar olhos para meu exemplar do Guimarães. Estava na mesinha onde hoje habita seu diário. Entortou a cabeça, identificou o título. Não se despediu, não agradeceu. Não fechou a porta. Com ares altivos, vinha tomar posse do que nunca foi seu.

Segunda-feira chuvosa. E fico admirada por estar a estas horas, ainda em frente ao espelho. Com a camisola que não dormi. É minha mão que acabei ferindo ao recolher os cacos no chão da cozinha. Manchou de sangue a camisola, sujou meu rosto. Mas não sinto dor. Não sinto nada.