quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Relatos de uma anarquista - parte3 (O diário)

Renoir

Se insisto nas páginas do diário de Yolanda, é por displicência. Pela frustração de não ter Guimarães em minhas mãos. Abro uma página. Yolanda também o lê. Por certo que o título que eu procurava, habita sua mesinha de cabeceira ao lado da cama. Bem perto de seus pensamentos. E assim não o encontrei.

Ela reescreve Guimarães! Segue seus passos, Seu raciocínio. Reconstrói frases, reinventa palavras. Quanta pretensão!

O que me irrita em Yolanda é essa esperança de que tudo possa ser diferente. De que sempre haverá uma escapatória. Ela gosta dos meus gostos com mais paixão que eu e ama meus homens com mais paixão que eu e idealiza meus ideais com mais paixão que eu.

Não sabia que Yolanda era dada aos infanto juvenis! São tantos textos... E se agora eu os roubasse para mim, não cometeria crime algum. Tantas vezes fui usurpada por ela sem nada reclamar.

Foi assim quando conhecemos Otávio. Na sala de estar, na casa de minha família. Final de semana em que reuníamos anarquistas para o almoço, regado a muita ópera, discursos e poesia. Era a primeira vez que Yolanda ia. Acompanhava o pai. Ela tinha treze anos. Me lembro bem porque a ocasião era especial, aniversário de morte de Sacco a Venzetti.

Ela, em um vestido que levava a cor de seus olhos. Eu tinha doze. Mais bonita do que ela. Mais inteligente e esperta do que ela. Mas depois que Yolanda colocou os pés em minha vida, perdi meu repertório, empobreci na alma, fiquei sem alternativas. Passei a ser sua sombra. Fui subtraída de mim mesma sem nada poder fazer.

E o Otávio? Anarquista no alto de seus dezoito anos. Lindo! Discursava na sala de estar quando me apaixonei por ele. Meu primeiro amor platônico. Mas o primeiro beijo foi de Yolanda assim como a primeira noite de amor e o primeiro e único filho.

Sempre fomos amigas. É que Yolanda é insegura, precisa do meu apoio. Eu a apoio, sempre relevando suas arbitrariedades. Foi assim com a poesia , foi assim com a anarquia, foi assim com Otávio. Mas não vou permitir que me tire Guimarães, nunca!

Não casei para cuidar do casamento malfadado de Yolanda. Otávio a deixou com Henrique ainda pendurado em seus peitos. Depois vieram as primeiras dores do reumatismo. Mas a biblioteca que foi minha em alguma outra vida, essa ela nunca me deixou cuidar.

Chego a pensar que desde o início ela sabia de meu plano, talvez até mesmo sobre a chave cópia que fiz. Sabia de minha admiração por Guimarães e de acinte o retirou da biblioteca, substituindo-o por seu diário. Al piacere de me aguçar curiosidade, despeito, inveja. Queria que eu a soubesse escritora.

Aos diabos com este diário! Se não o atiro às labaredas que pipocam da lareira, é por pura displicência.

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