domingo, 30 de novembro de 2014

Dilema


Edvard Munch



E se agora eu te esquecesse. E se eu apenas fugisse pra não ter de chorar. Mas e se o choro me perseguir, me alcançar, me lavar. E se eu não resistir.

E se agora eu te amasse. E se eu apenas negasse pra não ter de chorar. Mas e se o amor me perseguir, seu olhar me encontrar, me olhar. E se eu não resistir.

E se agora eu te dissesse tudo. E se eu apenas calasse pra não ter de chorar. Mas e se a palavra me perseguir, me invadir, me entontecer. E se eu não resistir.

E se agora eu te inexistisse. E se eu apenas fingisse para não ter de chorar. Mas e se o silêncio me perseguir, me redimir, depois me deixar. E se eu não resistir.

E se agora você em mim. E se você me fizer chorar. E se o choro não se extinguir, me consumir, me fizer te amar. E se eu não resistir. E se eu não resistir.

domingo, 23 de novembro de 2014

Constatação

Anselm Feuerbach



E de repente te sinto, inteiro, como fosse uma possessão. Pressinto o teu desespero, teu temor insuportável, que por um instante torna-se meu temor insuportável.
E você insiste. Persegue minha sombra e a ela se funde, fazendo-me duvidar do que vejo.
Como piche, gruda-me na alma. Improvável de ser descolado, escurece-a, sufoca-a.
Aqui não há ar suficiente para nós dois. O oxigênio que resta apenas potencializa a combustão. Labaredas que consomem, marcam na pele cicatrizes horrorosas.
Já sabemos o final da história ainda antes do livro ser aberto. Porque a paixão é clichê, o egoísmo é intrínseco, a dor é pungente.
Quem sabe morremos. Quem sabe a libertação não venha no momento em que o corpo não tiver mais utilidade além da carcaça do que já foi, os prazeres tiverem definhado no frio do que talvez nunca tenha sido.
É uma pena que não seja. Uma pena que não tenha sido. Uma pena ter de morrer. Uma pena já ter morrido.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Lucidez


Salvador Dali


Te busco onde inexisto. E tua sombra arredia funde-se ao imponderável do meu corpo. Por um segundo somos vulto, melodia que brisa, que passa. Desintegra-se.
Te desejo no impossível. E teu vazio funde-se ao meu. Por um segundo somos corpo, matéria, um novo planeta só nosso, que brilha estrela. Apaga-se.
Te compreendo na obviedade. E tua crueza funde-se a minha essência. Tua essência funde-se a minha crueza. Por um segundo somos nós mesmos, desnudados em carne viva, coração que espanca dentro do peito, colapsa.
Te perco na primeira escuridão. No tremeluzir inevitável das pálpebras. E tua imagem desfocada funde-se ao meu devaneio. Por um segundo somos apenas um. Imagem que deslumbra, solitude que sufoca, cega.
Te desisto. E tua insistência funde-se a minha impossibilidade, me invade o sossego. Escorrego palavras da mente. No vale do silêncio procuro abrigo. Por um segundo não posso... Simplesmente não posso mais.

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Libertação


Marc Chagall


Hoje mudei a roupa. Tirada a capa da melancolia, quero sair nua por aí, exibir meu corpo alvo e livre.
E de tão leve, espero que ele mais flutue que ande.
Não quero ir a um encontro marcado.
Quero simplesmente ir.
E se uma canção me embalar a caminhada, melhor.
E se amigos novos quiserem me acompanhar no refrão, melhor.
E se o dia fizer seu jogo de luzes, com nuvens encobrindo o sol de quando em quando, proporcionando-me certo psicodelismo, melhor.
Não quero ouvir reprimendas que me abalem o coração.
E ele, assim sereno, se quiser disparar de paixão, melhor.
E se a paixão quiser ser amor, melhor.
Só não quero ouvir reprimendas que me abalem a alegria.
Que seja uma volta no quarteirão, mas que faça em mim a impressão, de ter rodado o mundo inteiro. Nua, livre, apenas vestida de mim mesma.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

O Imbróglio

Edvard Munch



Psiquiatra sou por persuasão, Sigismundo por imposição, Shineider por maldição. Casado por falta de opção. Embora este último não valha de grande relevância para os autos. Competente, seja essa minha certeza, e a tenho, sou profundo estudioso da psique humana. Como cientista engajado, sirvo de cobaia para meus inventos. Posto que meu não o seja, confesso, trago da ficção algo possivelmente revolucionário.
Trata-se  de um experimento. Subtraído das páginas de um certo autor italiano. E agora, como último recurso de minha salvação recorro ao método, antes romanceado, agora sem romantismo algum. Nem sofismas, assim espero, o tratamento consiste em escrever uma autobiografia, trazendo para a consciência, atos, pensamentos e sentimentos do cotidiano que poderão revelar-se preponderantes na melhora de pacientes com comportamentos compulsivos, sendo no meu caso, provar legítima defesa.
Falar de minha infância? Nunca. Fundamento que tal gesto poderia abalar minha imagem. Tenho nome, fama e patrimônio a zelar. Como profissional precavido que sou, parto da premissa de que estes escritos nas mãos erradas poderiam significar o fim. Me aterei aos fatos últimos e mais importantes, antes porém, devo salientar que não tenho propósitos de literatura, nem teria atrevimentos para tal.
Meu relato inicio dizendo, ou melhor escrevendo: que vinha sofrendo de estranhas intercorrências. Visão de vultos e sombras pela casa em plena luz do dia. Logo de início imaginei ser uma espécie de válvula escapatória depois de fatigante noite de estudo. O problema é que eles tomaram proporções preocupantes, a cada dia mais obsessivos, ou obsessores. Cabe esclarecer que nunca fui dado a crenças que se relacionem ao transcendental. Somente creio nos fatos.
Cheguei ao ponto de desconfiar de minha saúde mental. Idéia já descartada, dada minha condição de visionário e intelectual. Então percebi que tais sensações eram apenas o prelúdio de ocorrências mais, digamos, funestas. Vozes. Começaram a me perseguir. A princípio pareciam-me do Sr. Jonas, um novo paciente que apareceu no consultório mês passado. Mas seria impossível, se considerar que me encontrava sozinho no aconchego da sala de estar, fumando meu charuto, inebriado por Wagner, tendo minhas maiores inspirações.
Voz difusa, encoberta, à primeira vista intentada a me assustar, me enlouquecer. Apropriado de minhas altas capacidades profissionais, não me deixei abater, fiz anotações, tentei virar a página. O que não foi possível dada a recorrência dos acontecimentos. Nervos à flor da pele, o desequilíbrio emocional começava evidenciar-se em uma fisionomia antes impecável. Em sessão com Sr. Jonas o inquiri sobre possíveis visitas à minha casa, inclusive no meio da madrugada. Alegava-me, o homem, desconhecer o endereço, não obstante tivesse, eu, verificado um certo risinho no canto de sua boca. Diante de sua enfática negação, restei de mãos atadas, e o excluí de minhas desconfianças.
Ainda tentei conjeturar possibilidades com minha esposa, que já havia notado meu jeito assustado e alerta. Julgando-me neurótico, sofrendo de alucinações, ou talvez possuído, a infeliz usou este termo, me sugeriu visitar um amigo psiquiatra. Observei certo nervosismo em seu tom, costumeiramente apático e insignificante. Irritado, refutei tais investidas.
Semana depois, ao chegar em casa, fora do horário habitual, constatei que as vozes haviam se multiplicado. Inconformado, fui em busca de um gravador, teste derradeiro de minhas faculdades mentais. Qual não foi a surpresa ao deparar com Sr Jonas a deleitar-se com minha esposa em nossos lençóis. Aplacado, com tamanha estupefação, acabei deixando de lado meus métodos psicanalíticos tradicionais, para submetê-los a uma terapia de choque, ou a base de choques, pouca diferença faz agora. Tratamento importado por meu primo, recém chegado da grande guerra, que julguei deveras eficiente. O problema se deu porque o casal adultero se mostrava de organismo muito sensível, evoluindo para um quadro de êxito letal.Trazendo-me então ao presente questionamento por parte da policia.
Acredito que as informações fornecidas até aqui sejam provas contundentes de minha boa fé desde o início, vitima de um imbróglio. Não vendo mais necessidade em continuar expondo minha vida, encerro meu relato, mas não o experimento. Entrego estes autos ao meu advogado  na certeza de que logo deixarei esta delegacia infecta, podendo assim reassumir as funções psiquiátricas e minhas pesquisas no restabelecimento das pobres mentes doentias através da autobiografia.

sábado, 1 de novembro de 2014

O amor

C.Cenot


E de não saber o que era o amor, afoguei-me no oceano sem águas. Perdi o ar e senti a leveza da inconsciência, da realidade fora do corpo.

E de não saber o que era o amor, deixei-o passar, absorta nas sensações do fogo que me ardeu. Restei cinzas.

O amor? Não sei se aconteceu, se alguma vez aconteceu. Amor sem fim. Amor tem fim. Começo, meio e fim.

E de não saber o que era o amor, não me dei conta de que morria, eu, anuviada de não o ter vivido.

E de não saber o que era o amor, descrevi-o em palavras: perfeito. Desfeito, incerto, puído, bordado, florido, na frase, na rima, só pra mim.

E agora, de não saber o que é o amor, aborto-o, esvazio-me e sigo e vivo. Procuro-o, escondo-me. Não quero saber se é amor.

Auto retrato


Elvira Amrhein



Se tenho asas e não posso voar! Se tenho olhos e não posso ver! É tudo por causa do que me nego, e cega assim, às vezes me entrego, me perco. Então caminho pra não ter de voar, confundo rostos, sentimentos. Amo o vento como fosse brisa do mar, aceno convicta pra quem não conheço, às vezes ninguém está lá.

Como uma louca com asas que se nega a voar. Somente uma louca com asas se negaria, assim, a voar! Porque não vê, pressente. E a dor, dói tanto que cala. A alegria, de ser tão alegre, dói.

De repente tudo foge ao controle, a roda se põe a girar, asas assumem vida própria, levantam voo à revelia. Maldigo o vento, o tempo, a sorte, o destino. Respiro o antigo, peso o corpo, não vejo, me perco, me nego.

Amo o engano, aceno pra quem não conheço, desfaleço. Não posso voar!