domingo, 31 de outubro de 2010

Relatos de uma anarquista - parte 5 (Uma Valsa Vienense)

Gustave Kimt
Sinto que perdi o compasso. E era minha valsa que tocava. Minha vez. É o dia que se refaz sem ensejos de arrependimento, acostumado à rotina. Não velei noite, sequer levantei de minha poltrona. Na lareira, os restos mortais da lenha, que me queimaram pensamentos noite a dentro. Depois Henrique, em sua embriaguez sutil e incorporada. É que minhas palavras pouco sentido fazem depois de noite insone alimentando revanches.

O diário de Yolanda continua ali, inerte, irritante, me perdendo... É a chaleira que apita. A xícara que escorrega da mesa. É o segundo que antecede a queda. É nele que me concentro, capaz de prever mas não de evitar. Só me resta recolher os cacos no chão enquanto a água que ebuli, expande, transborda pelo fogão.

Da minha cozinha a casa de Yolanda parece menor que de costume, embora saiba que sua área construída seja bem maior. Ela sempre fez questão de frisar seu quintal maior e mais florido do que o meu, sua sala de música que acomodava piano de cauda, enquanto que a minha era apenas um espaço na estante para uma vitrola antiga, ali mesmo na sala de estar. Nunca me importei com nada disso, até agora.

Vejo Yolanda abrindo cortinas da janela de seu quarto e fico confusa porque há muito que ela já não chega mais junto às janelas, menos ainda permite que a luz entre em sua casa. Yolanda parece rejuvenescida como no tempo de Henrique bebê, como no tempo em que Otávio foi meu. E no lapso o vejo parado, atrás dela. Ele me olha. Sempre olhou para mim.

Era meu aniversário, nem sei mais quantos anos fazia, vinte, vinte e um talvez. Otávio veio me presentear, "mas guarde longe dos olhos de Yolanda. Te trouxe um exemplar do Guimarães. São contos." Ele sorriu, me inundando os sentidos.

São as lembranças que agora vagueiam entre o distante e o instante em que o convidei a entrar, provar do vinho que acabava de abrir. "É tinto." Era o mesmo tinto que meu pai bebia em todas as comemorações, entre anarquistas. Às vezes até nos aniversários da família para acompanhar o cordeiro que assava no forno, especialidade de mamãe. Mas isso tinha sido em outros tempos. O saboreava sem acompanhamentos, solitário como eu.

Otávio hesitou, procurou convidados por entre frestas. Me olhou consternado. "Minha bela Antonella, sempre sozinha." Embora soubesse que para mim era apenas um estúpido aniversário, nada mais. Brindamos. "Mas só bebo uma taça, que Yolanda pode me notar ausente."

Na vitrola tocava uma valsa vienense, minha preferida desde pequena, quando sonhava rodopiar pelos grandes salões de antigamente, nos braços de um homem encantador. "Me concede esta dança?" Otávio me adivinhava desejos com tanta doçura. Dançamos entre mobílias. Brindamos tantas vezes naquele começo de noite. Rimos, relembramos juventude. Embebedados pelo tinto, ele me fez corar ao confessar que sabia de minha paixão adolescente por ele. Que das vezes em que discursou na sala de meu pai, notava o brilho em meus olhos e por isso os evitava, era medo de tropeçar nas palavras.

Me beijou. Ali mesmo de pé perto da mesa de jantar. Disse que deixaria Yolanda. Não me surpreendi, também não acreditei. Sabia de seu amor e preocupação com o pequenino Henrique. Não disse nada. Não me neguei a nada. Deixei que os ventos nos carregassem ao destino que já aguardava há tempo. Nosso destino. Nosso momento.

Minha Valsa Vienense. Mas é engraçado porque sinto que perdi o compasso e dele me exilei. É o chá quente que me queima os lábios e me faz curiosa. Em pé na cozinha recostada à pia, olhando para a janela do quarto de Yolanda, imagino se ela já estaria de pé.

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