domingo, 10 de novembro de 2019

Conversa com Deus




Michel Cheval - Surrealismo e o absurdo


...e ele, sentado no banquinho empoeirado, na beira da estrada. Vendia bananas na carroça de boi improvisada de banca. No horizonte só se via azul e paisagem, borrada de uma névoa que perdurava mesmo no meio dia. E foi de calor que ele tirou o chapéu de palha e começou a se abanar. Do nada, de uma brisa boba, foi que ouviu alguém dizer seu nome, e ele soube que era Deus, olhou pra cima e respondeu:

- É o senhor, Deus? Eu carrego cá comigo essa certeza de ser o senhor, disse outro dia uma moça de muita sabedoria que Deus passava justo por aqui de quando em quando. Pois saiba que é com o senhor que eu falo e rezo: não se apegue às minhas palavras sem feitura, mas o que digo é do meu mais sincero sentir...

Brisa boa veio de encontro e bastou para satisfazer o menino envelhecido por dentro, e lhe dar a certeza de que Deus o ouvia:

- É que eu preciso desse entendimento, o do seu pretender, digo, o porquê desse povo todo vivendo no sofrimento da alma. Explico: é que pras bandas de cá a guerra come solta, gente que era de bem, armada até os dentes, armada de uma fala preta pesada, feia mesmo... Gente que se engalfinha com gente... e de ódio em ódio vão se matando, na alma, no sentir, que era o mais puro, nem o laço, o do sangue dado pelo senhor, é motivo de apaziguamento e compreensão. E sabe o que mais aflige o meu pensar? Depois de uma batalha, ninguém tá feliz, ninguém sabe da felicidade. E a gente, que fica só de vigiar os corações, vê assim: tudo apertado, de dor, de culpa ou do tal orgulho ferido...  Eu tenho pra mim que o inventor do orgulho é o capeta, coisa feita mesmo, e é pra instigar que depois ele sopra no nosso ouvido essa história de que o outro possa ser de mais valor perante o Senhor, que a gente, aí sabe como é, sobe feito foguete o arrepio que amolece a espinha e não tem mais pensar ou (des)pensar que segure o sangue que cega as vistas... Aliás é de não querer ver mais tanta aflição que elas me têm falhado, será senhor Deus? E se for ele? O capeta? O moço das marionetes! Dizem as más línguas que o capeta é homem de voz forte, como fosse a melodia encantadora de serpentes, sabe contar boas histórias, tem jeito de sedução e de consumir o nosso sincero querer faz a gente querer outra coisa, a coisa que ele quer. Mas e o que ele quer? O senhor Deus pode perguntar. Respondo: eu amigo do senhor que sou, de sobreaviso lhe deixo, ele quer o seu lugar! Dizem que ele é da feitiçaria: dessa que faz a gente repetir o sinal da cruz seguido, três vezes, que é pra dá proteção e tirar a imagem do pensamento. Ouvi que ele mente a verdade e (des)conta o conto tudo de novo se for do benefício dele.  E aí eu é que fico aqui só de perguntar: e o que será dessa terra de gente que no entardecer da vida queria mesmo é ter encontrado a felicidade, como vai ser morrer sem ter vivido, ou ter vivido assim, displicente das coisas mais importantes? Explica pra mim senhor Deus?

Dessa vez não havia brisa, em vez disso parou um carro, o motorista queria saber das bananas, comprou meia dúzia, antes de arrancar disse:

-  Ô moleque, o tempo está mudando, acho que vem tempestade por aí, melhor se abrigar

O menino olhou pro céu, achou melhor seguir o conselho do moço, porque o azul já acinzentava mais rápido que o normal, recolheu a mercadoria arrumando cada cacho com muito zelo que era pra não danificar as bananas, ainda pensou no cheiro da torta que a mãe faria para aproveitar o que não tinha sido vendido, sentou-se então na carroça, olhou mais uma vez pro céu e disse:

- É senhor Deus, nossa prosa não é terminada não, desses mistérios que o senhor escondeu entre o céu e a terra,  eu quero ouvir e vou pia jurado: guardo seu segredo, vou ser aprendiz do bem viver, da sua poesia. Agora a água chega, de vento em vento, lava a terra , mas amanhã o sol há de brilhar lá na quina da montanha, aí fica tudo sequinho, o mato verde, o céu azul. Eu vou estar por aqui e quando a brisa bater vou saber que é o senhor.

E transformada a paisagem em noite, ainda de dia,  o menino na carroça de boi  seguia, tranquilo, já quase desaparecia no encontro da terra com o horizonte.