sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Relatos de uma anarquista - parte 4 (Henrique)

Cezanne

Ouço os passos de Henrique, inolentes, pela calçada amorfa e silenciosa. Para chegar à porta de Yolanda, costuma atravessar-me o jardim de casa. É que ele prefere a porta dos fundos, embora saiba que a mãe por nada acordaria, dopada de remédios. E saiba ainda que se nem voltasse no outro dia e no outro, seria difícil que ela o notasse ausente. Há muito que não se importa com o rapaz. Desde que o pai se foi.

Henrique de andar arrastado ampara os ombros descaídos no pouco que lhe resta de existência. É tristura de alma.

E pensar que o tive em meus braços, antes que Yolanda! Era tão pequenino e indefeso, e vi nele tanto de mim! Meus olhos amendoados! Era Otávio no feitio, com os meus olhos. Por um instante cheguei pensar que aquele bebê fosse meu, meu! E saído do ventre de Yolanda! Que sina! Naquela época me parecia uma loucura provável. Às vezes ainda penso que talvez...

Yolanda! Tão desnaturada! E todas as noites que eu amanhecia em sua casa com Henrique nos braços? O afagava, o acalmava, cantarolava musiquinhas, o fazia dormir. Por vezes pressentia Otávio que me espionava do corredor. Ele sabia que Yolanda não seria capaz de benevolências. Nunca perdeu noites insone para acudir o bebê. Ainda que fosse para protegê-lo do frio.

E quando maiorzinho, era eu quem  buscava Henrique na escola por conta das brigas em que se envolvia. Era perseguido por alguns colegas por ser filho de anarquista. Perseguido como o pai! E a diretora me chamava: "É a mãe?"Sim , eu era a mãe dele! Legitimada pelo amor que lhe dedicava. Éramos uma família linda! Eu, Henrique e Otávio...

Mas aí, Yolanda! Acabrunhada, uma pedra que feria o dedo mindinho à carne viva. Sempre desgostosa de si, imperfeita! Me impressiona a imperfeição de Yolanda! Sua capacidade insana de questionar e lamentar por tudo. Yolanda escolheu a clausura de seus pensamentos. Foi ela quem primeiro abandonou Otávio, o atirou em meus braços e o enviou para a morte e por isso eu a desprezo.

Sinto compaixão por Henrique, pobre diabo que carrega da mãe o mesmo semblante obscuro, irremediável. Vejo seu vulto passar rápido por minha janela. Está embriagado, caminha inexistido. É o dia invadindo a escuridão.

Nenhum comentário: