terça-feira, 23 de outubro de 2012

Entre a expectativa e a solidão

Edvard Munch


Foi o tempo que passou. Pontual. Passou pela menina como fosse um trem sem estação. Assim apressado, de ruído frenético. Ela o viu de relance, ventania que lhe desarrumou o íntimo, provocando sensações. Desafiada, a menina bem tentou persegui-lo, pela estrada que corria junto dele. Faltou-lhe fôlego, ou fosse a mala que pesada demais não lhe permitira tal encalço. Ficou, então, para trás. Chorosa da impiedade do tempo, da incapacidade do corpo, tentada a retornar. Prosseguiu. E foi nas insignificâncias deixadas no rastro do vento, que ela descobriu beleza peculiar. O que antes lhe parecia um deserto, de paisagens monótonas, agora a deslumbrava. Expectativa. Que ressurgia entre a esperança e a ilusão. Primeiro a rosa, que desgarrada do tempo viera lhe enfeitar os cabelos. Depois o mar. Logo ali, na derradeira beirada da terra. Oceano de um tom escuro, que somente revelava seu esmeralda na presença do sol, aguardava por ela em silêncio. Silêncio que somente na ausência do tempo, a menina poderia reconhecer. Silêncio da solidão... É que mais uma vez, depois de tantas batalhas, ela sentiu medo; de que talvez aquelas águas perenes pudessem ser tomadas pela inquietude de ondas gigantescas e assim a levassem para o fundo. Profundo escuro e quieto, onde o tempo não seria bem-vindo, onde, enfim, a menina poderia recompor-se por dentro. Mas ela, hesitante, preferiu não avançar, também não quis recuar. Restar assim, por um momento, à distância segura, entre a expextativa e a solidão.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Sem saída


Dali



Diante da encruzilhada, a menina avistou um banquinho. Logo ali no entroncamento de muitos caminhos, aquele banquinho. Surrado do tempo, desistido, fosse apenas esquecido, fosse apenas um banquinho, de fragilidade ignorada.
A menina quis sentar-se, descansar a mala no chão, farta que estava das escolhas não feitas. De costas. Mirando o passado, ausentou-se por um momento, e distraída das coisas mais importantes, esqueceu dos motivos que a levavam ali. Carregava nos olhos a secura do presente, a respiração sufocada da paisagem que apequenava, desimportante. Ja desfeita dos sonhos impossíveis, estava decidida a também despojar-se das saudades, não fosse o cansaço.
Agora, abraçada à mala, quis seguir, quem sabe levada pelas mãos suaves do vento, fossem apenas os fantasmas de sempre, que a acompanhavam. Mas a menina enconbriu-se de não ver, porque não havia vento, marasmo que consumia todo o oxigênio, não haveria ninguém além dela, à deriva na terceira margem.
E assim a menina restou e restou e restou, só de passar o tempo. Até que, desarrependida, buscou mais uma vez a resposta, na mente, no corpo, nos sentidos. Mas é que por agora ainda não haveria saída, apenas a dúvida.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Caminhada

Dali



Desnudada de si mesma. A menina ia. Passos, que de tão leves não tocavam o chão. Assim distraída, a menina sorria. Sorriso nascido de um riso, que de tão solto a fazia tola. Dissidente de si mesma, a menina apenas escolhia outro caminho. Caminho que nada oferecia além de pequenos rompantes à alma. E na despretensão curiosa de saber, ela ia. Caminhava sem rumo. No rumo de casa. Fugida de si mesma. Assim a menina ia. Na estrada que não era feita das pedras amarelas, sem encantos nem fadas, apenas uma mala carregava na mão. Mala cheia do vazio que a acompanhava. Como fosse o medo da felicidade eterna, a clausura úmida das dores. Velhos conhecidos. A menina, da mala não poderia separar-se. Nunca. Um troféu, uma mácula. Passado que carregaria consigo até o fim. Um novo final. A mesma busca.
E quando o céu quis acinzentar, ela, gentil o reverenciou. Destemida de si mesma. Assim a menina ia. Deslumbramento que fazia do sépia, colorido, que de tão vivo ofuscava as vistas. Vai ver por isso, as lágrimas.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Nona (9º)


Matisse


Foi de súbito. Susto quase premeditado. A menina estendeu os braços no ar. As mãos cerradas, então abriu.
Foi num gesto grandioso. Impulso quase libertador. Seja feliz! A menina dizia para si. No silêncio entre as notas de Beethoven. Seja feliz! Ela dizia. Fortíssimo.
Nas mãos vazias, a melodia. Constatação. Indemarcadas na paisagem, mãos soltas assim no ar, pareciam menores do que costume, talvez mais tolas.
Foi num suspiro. Coragem quase opressora. Os pés juntos plantados no chão. A menina queria ser grande, mas ali permaneceu, inexistida. A menina queria ser livre. Caminho do qual não poderia retornar.
Foi num momento de iluminação. Força quase complacente. A menina questionou, e mais de uma vez questionou. O mesmo semblante. A mesma busca. Outras notas.
Olhou ao seu redor para se dar conta do presente. Malas feitas. Resignação. A menina adormeceu. Finalmente adormeceu.

domingo, 5 de agosto de 2012

O nada

Claude Monet



À beira do penhasco, a menina admira o nada. A cabeça abandonada sobre os joelhos, levemente inclinada para cima. Pensamento ausente. E na possibilidade da queda, suas mãos estão úmidas. O peito abalado é inquietude da alma que não pode parar. A menina está farta, mas sabe que não pode parar. Voa alto. Além dos limites do horizonte. Distâncias inimagináveis. Angústia, velha conhecida, agora a acompanha. E inesperado o peso torna-se insuportável. Fardo. Mais uma vez na iminência da queda. Deixar-se cair, seria cair para sempre. Não haverá chão que a ampare em pedaços. Talvez por isso a menina reste ali, admirando o nada com o sol de fundo entre as montanhas, a lua mal apagada, a brisa quase cantiga. A mesma busca. O mesmo desejo. E quando o tempo se esgota, a menina apenas finge que está tudo bem. Ela diz para si, tudo bem.

domingo, 29 de julho de 2012

A morte e o renascimento


Picasso


A menina sabia. Sempre soube. A morte nada tinha de mórbida. Era apenas um instante. O instante do renascimento. Indolor, inodoro, necessário, revelador. Tantas vezes ela morrera durante a vida sem se dar conta. Renascia então diferente. Talvez melhor, talvez apenas diferente. E quando deparou-se com a própria imagem diante do espelho, quis cegar, quis fugir para então ficar, quis perguntar. Quis tanto. Contida, apenas admirou-se ali refletida. Olhos fixos nos olhos. Mergulho profundo, em busca de um sentido, de uma história, de sua essência. Olhos de menina, às vezes tão pequenina e desprotegida... Deles chegou a sentir compaixão, porque vagos ansiavam por outro olhar. Um outro que sobrepusesse àquele ali tão viciado. Outro que a embalasse em compreensão, desejou. Euforia passageira. Tudo não passara de imagem forjada pela mente, tão diferente da verdade, tão equivocada, como o medo da morte. Morte das dores antigas, dos erros do dia anterior, das palavras mal ditas, do anoitecer, do breu. Medo da vida. Porque a menina sabia, sempre soube que seu maior temor era da vida. Mistério que não ousaria desvendar e por isso compactuara com a morte todo o tempo. Todo este tempo, como o vento que soprara-lhe por entre os dedos das mãos. Menina displicente! Ralhava consigo mesma. Porque ela sempre soube correr sem sair do lugar, e exausta percebia que logo à sua frente estava tão distante, sempre distante. Abatimento. Então a mágica aconteceu. Sem explicação, sem razão alguma, apenas fosse esta a única saída. Como nas histórias de finais felizes, porque a menina sempre quis um final feliz que fosse somente seu. Quis tanto. Foi quando fechou os olhos, as mãos juntas oprimidas junto ao peito. Decidiu que a morte seria o último suspiro da noite, para que começasse a viver ao primeiro raio de luz. Era este o segredo que agora carregaria consigo sem contar à ninguém, nunca. Porque a menina sabia, sempre soube. Sorriso no olhar refletido, olhar diferente, agora estava finalmente diferente. Talvez livre. Talvez apenas diferente.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Calmaria


Claude Monet


Foi no lapso do tempo e espaço. Verão. A criança nasceu velha, incompreendida. Pai e mãe não teve, teve filhos. A família, pessoas emolduradas, um retrato na parede nua, decadente, sem sorrisos. O último que saiu, bateu a porta, deixou cair. Abandonado. No chão. Ficou lá. Tudo bem. Amigos teve, dois. Saídos como ela, do mesmo útero, da mesma dor, no mesmo retrato. Abatimento. Eles não vingaram como a menina. Sucumbiram ainda na flor da juventude. Mirrados de alma, sonhadores dos sonhos impossíveis. Doentes. Dementes seria palavra mais adequada. Porque o único prazer da menina era descobri-las: novas palavras velhas, todas elas descortinadas em novos contextos como tivessem acabado de nascer. Ela queria as mais difíceis, mais inalcançáveis se possível fosse. Vivia imagens forjadas. Ilusão. Tenha sido este seu elixir salvador. Nunca renasceu. Crescida, continuou velha, reclusa. Até que um dia foi ter com o mar, expressão maior do Divino. Com ele, conversou em silêncio, horas talvez dias. Às vezes fechava os olhos para saber a sensação que se tinha. Outra vez usou os próprios braços para proteger-se, alento gelado que vinha lá do oceano. O primeiro abraço. Foi bom. Sentiu-se viva como o mar, que fazendo curva no horizonte, se ia... Compreendeu. A crescida menina velha compreendeu tudo. Baixou a cabeça, sorriu para si. Despediu-se em silêncio. Um aceno de cabeça apenas. Gratidão.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Amor à moda antiga


Portinari


Lili morreu. Dor pungente. Mal necessário. Não quis velório. Detesto velório. O último foi o de mamãe, me obrigaram a ir. Eu tinha somente oito. Ela, somente trinta e três. Muito nova para morrer.  Seu semblante pálido, imóvel, amargo. Era amargura por me deixar para trás.

E no ápice de minha dor por Lili, questionei aquele sonho. Na época, eu tinha somente dez. Era noite de tempestade típica do verão. Lembro-me bem porque até o lençol me fervia os pés. E eu sonhei com aquela menina vindo ao meu encontro. Não sabia onde estavávamos, sabia apenas do olhar azulado, lindo! Seu nome Lili. Ela me dizia ao pé do ouvido, um dia vamos nos casar! Suas palavras entranhadas em meus sentidos, irreversíveis. E a brisa quente de seu sussurro, a gota de saliva que lhe escapava pelos lábios respigada em meu pescoço, a ponta de seu nariz roçando leve minha orelha aguçava-me desejo. Apaixonado, acordei.

Eu, somente vinte. Começo de tarde. Aqui na esquina da minha rua ela me pedia informação. Tinha ensaio de teatro na casa da Fernanda. A Fernanda morava no meu prédio. Coincidência, destino. E o nome dela, da moça que pedia informação, Lili. O olhos não eram azuis. E sim castanhos, mas a gota de saliva...Era ela. Tinha de ser. Ficamos amigos. Saímos eu, Lili e o grupo de teatro. Explicaram-me que preferiam os autores pós modernos, de pensamentos controversos, fragmentados, intensos de sentimentos, problemáticos. Sem aquele papo clichê, sem aquele amor clichê.

Eu me declarei para Lili. Mais shakespeariano impossível. Namoramos. Eu, somente vinte e um. Ela talvez por pena, já nem sei. Eu amava Lili desde os dez. Romanticamente antiquado. Fiz amor com Lili. Mas acho que ela preferia um sexo pós moderno. Tentei ser um pouco mais Jorge Amado, as coisas só pioraram. Perdi naturalidade. Perdi Lili. Que nunca foi minha de verdade. Eu, somente vinte e quatro. Ela foi embora com o Alfredo. Um amigo do teatro, um tipo pós moderno. Foi aí que Lili morreu. Morreu dentro de mim. Supressão. O Joca me disse, esquece esse maldito sonho, sonha outro no lugar. Me Falou de uma amiga, tal de Matilde. Tive esperança de que ela se chamasse Lili.

Ainda procurei Lili em alguns rostos. Dei de cara com Matilde, por insistência do Joca. Mulata de olhos azuis, me chamo Matilde. Fiquei impressionado. Quis dar um de pós moderno. A Matilde queria amor à moda antiga.

Eu, somente vinte e seis. Ela me pediu em namoro. Eu, perdido, aturdido, distraído, já nem sabia como agir. Lili e sua gota de saliva, seu hálito quente, seus amores, seus autores, seus vapores de pós moderna me roubaram o repertório, confundiram-me. Mas a doce Matilde, docemente mulata, azulada no olhar, sussurrou-me ao pé do ouvido, um dia vamos nos casar! A noite quente anunciava tempestade típica do verão.







segunda-feira, 11 de junho de 2012

Refúgio

Rembrandt


Habito na ausência. Meu lugar favorito, de silêncio imperturbável. Mas de repente o impulso, que não se pode controlar, o salto.  Mergulho de cabeça que é para alcançar os pés no chão. E passo horas a decodificar pensamentos,  procuro palavras que os façam grandiosos, sublimes. Mas é que no papel tudo mingua, perde a cor de meus devaneios, e o que era silêncio se torna o refrão de algo que o mundo canta, que se impõe, invasivo, agressivo, dentro de mim. O barulho é ensurdecedor e diante disto a que chamam realidade, retraio. Minhas palavras estão enfraquecidas, meus pensamentos perderam o sentido, em mim tudo se abala, por um segundo deixo de ser eu mesma. É quando mergulho para o alto, de volta para meu refúgio, minha paz inabalável, retorno para ausência. Meu lugar preferido.