terça-feira, 28 de setembro de 2010

Relatos de uma anarquista - parte1 (O livro)

Van Gogh

Se entro sorrateira na biblioteca de Yolanda, é por razão forte. Ciumosa como é com aquela sala, que nunca me deixou passar, nem de perto. Me aguçou inveja tantas vezes, quando contava-me do cheiro que ali se conserva. E agora preciso de um titulo, que lá é certo encontrar. Muito importante para mim, mas ela egoísta que é, nunca entenderia. Não me resta outra alternativa.

É que Yolanda é de sono pesado. Toma remédios para o reumatismo precoce que herdou do pai assim como o sangue anarquista que corre em suas veias. Nossos pais frequentavam as reuniões, animadíssimas, como contavam. O pai dela era poeta fugido de Espanha. O meu professor, fugido de Itália. Já ouvi dizer que Yolanda também gosta de escrever. Se o faz é sorrateira como eu, agora.

Essa é a noite perfeita. Henrique, filho único de Yolanda saiu e é provável que durma por aí. É dado às noitadas, pobre diabo, escravo da jogatina. Teve vez de perder as calças que vestia, numa aposta. Voltou para casa de cuecas e uma toalha de mesa enrolada, caridade do barman.

Deve ser por isso que Yolanda é cheia de cuidados com a biblioteca, trancada a cadeado.Tem medo que o infeliz use suas raridades como cunha para mesa, ou pior, as use como moeda de aposta. Ela que enche os olhos e a boca para dizer de seus livros. Seria a morte.

Mas o que faço, justifico. É apenas um empréstimo que pretendo devolver.

Tenho minha chance. A porta da frente está sempre destrancada.. Tudo está quieto como deve ser. Subo as escadas. Abro a biblioteca com a chave copia que fiz. Oportunidade única. Foi no lapso.

A sala escura, imensa. O cheiro. É como se o conhecesse desde sempre. As estantes camufladas pela noite revestem as paredes. Dois metros de livros e mais livros. Deixo-me tonta. Mas a poltrona século XIX está no exato lugar onde a imaginei. Não a vejo com perfeição, mas posso senti-la. Sou capaz de tatear as ausências em meio ao breu. Não preciso das mãos. Talvez tenha sido em alguma outra vida, quando sentava-me à poltrona e deleitava-me com as leituras. Agora sei que não a invejava, simplesmente a reconhecia minha, nas descrições de Yolanda.

Pshhhh! São meus sapatos estúpidos que de insistentes produzem esse toc toc que pode me denunciar. E se isso acontecesse e Yolanda despertasse. Ao investigar o barulho desse de cara comigo em seu santuário! Eu empalidecida de susto, teria que explicar o inexplicável. A tentaria embromar com histórias de reencarnação e vidas passadas.

Ela, atéia, nada entenderia. Me colocaria dali para fora sob gritos e ameaças de chamar a policia. Eu, como vizinha e amiga devotada, tentaria explicar que um barulho suspeito me teria levado lá e diante da biblioteca destrancada, a desconfiança de um ladrão na casa. É provável que nada disso a convencesse e eu expulsa de sua casa, quiçá de sua vida, não teria mais acesso ao titulo que tanto preciso.

Sei exatamente onde o livro que procuro está. Minhas mãos me conduzem como se a meu corpo não pertencessem, nem minha mente obedecessem. As mesmas mãos que lêem texturas e dimensões. Encontrei, encontrei Guimarães Rosa.

Fecho a biblioteca. Nesta altura, os sapatos estão em uma das mãos, os pés em pontas. O único ruído é o da chave no cadeado. Desço as escadas. Bato a porta. Ainda tenho tempo de voltar os olhos, me certificar que a casa dorme. É que Yolanda é de sono pesado.







sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Dos meus anarquistas

Leonardo da Vinci, Uffizi, Florence
Dela me despedi em sonho. Fui até lá. A abracei e beijei. Incansável. Implorado. Não me deixasse para atrás. É que ele já tinha ido. Ela sorriu. Eu acordei. E fugida de seus lábios refugiei-me entre palavras. Descobri então, que sorriso também é palavra. Ela saiu corrida ao encontro dele. Tinha que ser assim.
Saídos. Ela e ele. Mãe e filho. Avó e pai. A batida de porta ecoou tempos na casa vazia que de engraçada nada mais tinha. Sem janela, sem parede, sem teto, sem rumo, sem chão.
Reparei um bilhete, logo ali, na fresta da porta. Era para mim. "Non piangere bambina. Vivi la vita, scrivi la tua verità. Mai ti dimentica che sei un'anarchica."
Mas era apenas o vizinho dando condolências pelo luto.
É dessa saudade inteirada... Dos meus anarquistas, graças a Deus

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O fim e o começo

"O fim e o começo" - Museu Lasar Segall
... A porta destrancada autorizava-me entrar sem bater. A bichana da família, inquieta enroscava-me os tornozelos, pressentia, miava como que querendo dizer... O que eu há muito já sabia, antes mesmo de chegar lá. Deparei-me com ele de pé no final do corredor. Ainda estava de cuecas. Me olhava. E na sombra da noite que já se ia, tive a impressão de algo em sua mão. Ele parecia menor do que de costume. Mais indefeso que de costume.
Dele, não me despedi. Auto-piedade.
Desviados olhos da linha contínua que apitava na pequena tela, baixei a cabeça e me dei conta do saquinho em sua mão. Coberto de nódoas; das balas apodrecidas pelo tempo. Ele, somente 65, liquefeito em sangue, renascia em corpo de menimo. Voltava para o banco da sala de embarque, de onde nunca havia saído. Ia esperar por ela.

Era uma vez...



Gustav Klimt
Um aeroporto. Uma despedida. Ela, em tempos perigosos, decidira navegar pelos mares do bravio  comunismo. Ele, apenas 5, carregava na mão um saquinho de balas, porque os de 5 adoram comer balas! Mas aquelas eram especiais. Para ela. Dono de tamanha força de vontade prometera a si,"dessas não como nenhuma". E ela, de mãos ocupadas esqueceu de pegar. Hora de embarcar. Nela, os olhos hesitavam, as pernas decididas. Tinha de ser assim. Ele, que de imitar alguém, acenava para ela com a mãozinha que estava vazia. Nada entendia daquele adeus. Era a tentativa derradeira de entregar os doces à mãe. Mas ela se ia. Levaram-no. E foi no justo momento em que ela chorava escondido que ele de não ver, crescia na culpa e na ignorância daquelas lágrimas.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Justificativas

Renoir

Sucumbi. Era pressão demais! Leventei de minha confortável poltrona século XIX e cheguei aqui. Para dizer? Tanto e quase nada. Defender o meu pensar, que de nada foi acusado.
Mas isso pouco importa. Cheguei e quero  ser, nessa terra virtual, mais um ninguém.
Trago comigo meus anarquistas, que talvez, sejam a razão de tudo isso. São tantas histórias... E dou graças a Deus de serem, eles, meus.
Escrever? É minha sina. Minha herança. Meu maior prazer. Meu grande desafio. Procurar meu sol em meio a sombra que paira. Morrerei tentando. Morrerei feliz.