Van Gogh |
Se entro sorrateira na biblioteca de Yolanda, é por razão forte. Ciumosa como é com aquela sala, que nunca me deixou passar, nem de perto. Me aguçou inveja tantas vezes, quando contava-me do cheiro que ali se conserva. E agora preciso de um titulo, que lá é certo encontrar. Muito importante para mim, mas ela egoísta que é, nunca entenderia. Não me resta outra alternativa.
É que Yolanda é de sono pesado. Toma remédios para o reumatismo precoce que herdou do pai assim como o sangue anarquista que corre em suas veias. Nossos pais frequentavam as reuniões, animadíssimas, como contavam. O pai dela era poeta fugido de Espanha. O meu professor, fugido de Itália. Já ouvi dizer que Yolanda também gosta de escrever. Se o faz é sorrateira como eu, agora.
Essa é a noite perfeita. Henrique, filho único de Yolanda saiu e é provável que durma por aí. É dado às noitadas, pobre diabo, escravo da jogatina. Teve vez de perder as calças que vestia, numa aposta. Voltou para casa de cuecas e uma toalha de mesa enrolada, caridade do barman.
Deve ser por isso que Yolanda é cheia de cuidados com a biblioteca, trancada a cadeado.Tem medo que o infeliz use suas raridades como cunha para mesa, ou pior, as use como moeda de aposta. Ela que enche os olhos e a boca para dizer de seus livros. Seria a morte.
Mas o que faço, justifico. É apenas um empréstimo que pretendo devolver.
Tenho minha chance. A porta da frente está sempre destrancada.. Tudo está quieto como deve ser. Subo as escadas. Abro a biblioteca com a chave copia que fiz. Oportunidade única. Foi no lapso.
A sala escura, imensa. O cheiro. É como se o conhecesse desde sempre. As estantes camufladas pela noite revestem as paredes. Dois metros de livros e mais livros. Deixo-me tonta. Mas a poltrona século XIX está no exato lugar onde a imaginei. Não a vejo com perfeição, mas posso senti-la. Sou capaz de tatear as ausências em meio ao breu. Não preciso das mãos. Talvez tenha sido em alguma outra vida, quando sentava-me à poltrona e deleitava-me com as leituras. Agora sei que não a invejava, simplesmente a reconhecia minha, nas descrições de Yolanda.
Pshhhh! São meus sapatos estúpidos que de insistentes produzem esse toc toc que pode me denunciar. E se isso acontecesse e Yolanda despertasse. Ao investigar o barulho desse de cara comigo em seu santuário! Eu empalidecida de susto, teria que explicar o inexplicável. A tentaria embromar com histórias de reencarnação e vidas passadas.
Ela, atéia, nada entenderia. Me colocaria dali para fora sob gritos e ameaças de chamar a policia. Eu, como vizinha e amiga devotada, tentaria explicar que um barulho suspeito me teria levado lá e diante da biblioteca destrancada, a desconfiança de um ladrão na casa. É provável que nada disso a convencesse e eu expulsa de sua casa, quiçá de sua vida, não teria mais acesso ao titulo que tanto preciso.
Sei exatamente onde o livro que procuro está. Minhas mãos me conduzem como se a meu corpo não pertencessem, nem minha mente obedecessem. As mesmas mãos que lêem texturas e dimensões. Encontrei, encontrei Guimarães Rosa.
Fecho a biblioteca. Nesta altura, os sapatos estão em uma das mãos, os pés em pontas. O único ruído é o da chave no cadeado. Desço as escadas. Bato a porta. Ainda tenho tempo de voltar os olhos, me certificar que a casa dorme. É que Yolanda é de sono pesado.