terça-feira, 18 de novembro de 2014

Libertação


Marc Chagall


Hoje mudei a roupa. Tirada a capa da melancolia, quero sair nua por aí, exibir meu corpo alvo e livre.
E de tão leve, espero que ele mais flutue que ande.
Não quero ir a um encontro marcado.
Quero simplesmente ir.
E se uma canção me embalar a caminhada, melhor.
E se amigos novos quiserem me acompanhar no refrão, melhor.
E se o dia fizer seu jogo de luzes, com nuvens encobrindo o sol de quando em quando, proporcionando-me certo psicodelismo, melhor.
Não quero ouvir reprimendas que me abalem o coração.
E ele, assim sereno, se quiser disparar de paixão, melhor.
E se a paixão quiser ser amor, melhor.
Só não quero ouvir reprimendas que me abalem a alegria.
Que seja uma volta no quarteirão, mas que faça em mim a impressão, de ter rodado o mundo inteiro. Nua, livre, apenas vestida de mim mesma.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

O Imbróglio

Edvard Munch



Psiquiatra sou por persuasão, Sigismundo por imposição, Shineider por maldição. Casado por falta de opção. Embora este último não valha de grande relevância para os autos. Competente, seja essa minha certeza, e a tenho, sou profundo estudioso da psique humana. Como cientista engajado, sirvo de cobaia para meus inventos. Posto que meu não o seja, confesso, trago da ficção algo possivelmente revolucionário.
Trata-se  de um experimento. Subtraído das páginas de um certo autor italiano. E agora, como último recurso de minha salvação recorro ao método, antes romanceado, agora sem romantismo algum. Nem sofismas, assim espero, o tratamento consiste em escrever uma autobiografia, trazendo para a consciência, atos, pensamentos e sentimentos do cotidiano que poderão revelar-se preponderantes na melhora de pacientes com comportamentos compulsivos, sendo no meu caso, provar legítima defesa.
Falar de minha infância? Nunca. Fundamento que tal gesto poderia abalar minha imagem. Tenho nome, fama e patrimônio a zelar. Como profissional precavido que sou, parto da premissa de que estes escritos nas mãos erradas poderiam significar o fim. Me aterei aos fatos últimos e mais importantes, antes porém, devo salientar que não tenho propósitos de literatura, nem teria atrevimentos para tal.
Meu relato inicio dizendo, ou melhor escrevendo: que vinha sofrendo de estranhas intercorrências. Visão de vultos e sombras pela casa em plena luz do dia. Logo de início imaginei ser uma espécie de válvula escapatória depois de fatigante noite de estudo. O problema é que eles tomaram proporções preocupantes, a cada dia mais obsessivos, ou obsessores. Cabe esclarecer que nunca fui dado a crenças que se relacionem ao transcendental. Somente creio nos fatos.
Cheguei ao ponto de desconfiar de minha saúde mental. Idéia já descartada, dada minha condição de visionário e intelectual. Então percebi que tais sensações eram apenas o prelúdio de ocorrências mais, digamos, funestas. Vozes. Começaram a me perseguir. A princípio pareciam-me do Sr. Jonas, um novo paciente que apareceu no consultório mês passado. Mas seria impossível, se considerar que me encontrava sozinho no aconchego da sala de estar, fumando meu charuto, inebriado por Wagner, tendo minhas maiores inspirações.
Voz difusa, encoberta, à primeira vista intentada a me assustar, me enlouquecer. Apropriado de minhas altas capacidades profissionais, não me deixei abater, fiz anotações, tentei virar a página. O que não foi possível dada a recorrência dos acontecimentos. Nervos à flor da pele, o desequilíbrio emocional começava evidenciar-se em uma fisionomia antes impecável. Em sessão com Sr. Jonas o inquiri sobre possíveis visitas à minha casa, inclusive no meio da madrugada. Alegava-me, o homem, desconhecer o endereço, não obstante tivesse, eu, verificado um certo risinho no canto de sua boca. Diante de sua enfática negação, restei de mãos atadas, e o excluí de minhas desconfianças.
Ainda tentei conjeturar possibilidades com minha esposa, que já havia notado meu jeito assustado e alerta. Julgando-me neurótico, sofrendo de alucinações, ou talvez possuído, a infeliz usou este termo, me sugeriu visitar um amigo psiquiatra. Observei certo nervosismo em seu tom, costumeiramente apático e insignificante. Irritado, refutei tais investidas.
Semana depois, ao chegar em casa, fora do horário habitual, constatei que as vozes haviam se multiplicado. Inconformado, fui em busca de um gravador, teste derradeiro de minhas faculdades mentais. Qual não foi a surpresa ao deparar com Sr Jonas a deleitar-se com minha esposa em nossos lençóis. Aplacado, com tamanha estupefação, acabei deixando de lado meus métodos psicanalíticos tradicionais, para submetê-los a uma terapia de choque, ou a base de choques, pouca diferença faz agora. Tratamento importado por meu primo, recém chegado da grande guerra, que julguei deveras eficiente. O problema se deu porque o casal adultero se mostrava de organismo muito sensível, evoluindo para um quadro de êxito letal.Trazendo-me então ao presente questionamento por parte da policia.
Acredito que as informações fornecidas até aqui sejam provas contundentes de minha boa fé desde o início, vitima de um imbróglio. Não vendo mais necessidade em continuar expondo minha vida, encerro meu relato, mas não o experimento. Entrego estes autos ao meu advogado  na certeza de que logo deixarei esta delegacia infecta, podendo assim reassumir as funções psiquiátricas e minhas pesquisas no restabelecimento das pobres mentes doentias através da autobiografia.

sábado, 1 de novembro de 2014

O amor

C.Cenot


E de não saber o que era o amor, afoguei-me no oceano sem águas. Perdi o ar e senti a leveza da inconsciência, da realidade fora do corpo.

E de não saber o que era o amor, deixei-o passar, absorta nas sensações do fogo que me ardeu. Restei cinzas.

O amor? Não sei se aconteceu, se alguma vez aconteceu. Amor sem fim. Amor tem fim. Começo, meio e fim.

E de não saber o que era o amor, não me dei conta de que morria, eu, anuviada de não o ter vivido.

E de não saber o que era o amor, descrevi-o em palavras: perfeito. Desfeito, incerto, puído, bordado, florido, na frase, na rima, só pra mim.

E agora, de não saber o que é o amor, aborto-o, esvazio-me e sigo e vivo. Procuro-o, escondo-me. Não quero saber se é amor.

Auto retrato


Elvira Amrhein



Se tenho asas e não posso voar! Se tenho olhos e não posso ver! É tudo por causa do que me nego, e cega assim, às vezes me entrego, me perco. Então caminho pra não ter de voar, confundo rostos, sentimentos. Amo o vento como fosse brisa do mar, aceno convicta pra quem não conheço, às vezes ninguém está lá.

Como uma louca com asas que se nega a voar. Somente uma louca com asas se negaria, assim, a voar! Porque não vê, pressente. E a dor, dói tanto que cala. A alegria, de ser tão alegre, dói.

De repente tudo foge ao controle, a roda se põe a girar, asas assumem vida própria, levantam voo à revelia. Maldigo o vento, o tempo, a sorte, o destino. Respiro o antigo, peso o corpo, não vejo, me perco, me nego.

Amo o engano, aceno pra quem não conheço, desfaleço. Não posso voar!

sábado, 25 de outubro de 2014

Morte Iminente



Paul Cezanne


O que me mata, não são seus olhos insinceros, sua verdade leviana e insegura, os mecanismos torpes do seu pensar.

O que me mata, não são suas intenções duvidosas, seu humor quase premeditado, seu jeito de olhar ignorando tudo.

O que me mata, não é a falta de expectativa, suas palavras não ditas, seu fogo gelado, seu peito vazio, seus infortúnios.

O que me mata, é compreender tudo isso. E de compreender, duvidar de mim mesma. E de compreender, reconhecer-me no espelho e não conhecer-me mais.

O que me mata, é a culpa que de tua fica minha. O disparate de pensar que poderia te ter em sua melhor versão e de te ter, me ter. Quem sabe resgatar para o meu corpo pedaços de alma, que displicente fui perdendo por aí...

É tudo isso que me mata.

sábado, 27 de setembro de 2014

Adormecidos


 
Jonh Melhuish

 E quando o dia, cansado de ser sol, despertar noite num quase sorriso da lua, é quando irei em seu encalço.
Ainda que tudo conspire contra e às fadas do conto isto inspire afronta, eu assim abandonada à própria sorte, irei em seu encalço.
Sei que é lá no alto da colina, na torre solitária do castelo que já ruiu, que nunca existiu, é onde você está. Murada que te mantém. Você vilão, você refém, que descansa embalado pela cantiga. Quem dera fosse um ninar... E dormindo pudéssemos acordar... Mas amaldiçoados que fomos!
Calado, joelhos ao chão, pesadas são as cordas que escalpelam a alma, já sem pele, é carne viva que te expõe os segredos mais indizíveis. Não pode amar. É por causa da dor. Não pode ser amado.
E eu, sem muito compreender meus passos, propósitos indemarcados no pensamento, assim como as pegadas que diluem-se no caminho lamacento, mal me sustento... Sentimento que não quer sentir e sente, passo que não quer seguir e segue.
Chamo seu nome e tudo passa a ser por causa do seu nome. Apenas vou em seu encalço sem importar que seja noite e a lua não mais queira me guiar, as fadas se recusem a este conto e só façam me amaldiçoar, ainda assim, ainda exausta, eu persistirei.
Escalarei as paredes escorregadias e petrificadas que te cercam o peito, chegarei ao seu rosto amortecido, ausente, e contemplarei seus lábios com tanta doçura, amor sublime que buscarei além deste mundo e devotarei todo ele num beijo.
E quem sabe seu beijo me desperte deste sono de cem anos me liberte, me salve de mim mesma.
E possa eu finalmente acreditar em contos de fadas, em príncipes, no amor eterno.

domingo, 6 de abril de 2014

Sobre a morte de Clarisse

Hovsep Pushman

Clarisse me oprimia. Jeito de menear a cabeça me dando de ombros, queixo em riste. Olhos atentos que me ignoravam na intenção de me ignorar.
 
Clarisse me irritava, jeitinho de fragilidade, cheia de mãos gesticuladas à exaustão, caras e bocas que não revelavam palavras, apenas sombras de malícias num francês sustentado a muletas.

Clarisse me entristecia. Mania de atropelar sentimentos, palavras, idades, meu cachorro. Eu nunca a perdoei por isso.

Clarisse me dizia, se fazia, se gabava. Boa moça, boa família, boa conta bancária. Boa vadia, eu completava em pensamento.

Clarisse me descrevia. Gostava de escrever. Dizia ter o dom das entrelinhas, nascido com ele. Piada! Enquanto no papel difamava a mim mesma,  a ela mesma, a nós. Identidade insuportável. Coincidência de reflexos, apenas isto. Um espelho. Mas a farsante sempre foi ela.

Clarisse morria aos 27, porque assim era mais justo, e tinha Bach como trilha sonora. Empréstimo meu. Foi a mãe dela que pediu. Era seu último desejo. Meu maior desejo. Jesus Alegria dos Homens, e minha também. Justifiquei minha ausência: ”É que velórios me causam mal estar, uma espécie de pânico”. Simulei uma lágrima, a abracei convicta, “Meus pêsames”.