sexta-feira, 14 de novembro de 2014

O Imbróglio

Edvard Munch



Psiquiatra sou por persuasão, Sigismundo por imposição, Shineider por maldição. Casado por falta de opção. Embora este último não valha de grande relevância para os autos. Competente, seja essa minha certeza, e a tenho, sou profundo estudioso da psique humana. Como cientista engajado, sirvo de cobaia para meus inventos. Posto que meu não o seja, confesso, trago da ficção algo possivelmente revolucionário.
Trata-se  de um experimento. Subtraído das páginas de um certo autor italiano. E agora, como último recurso de minha salvação recorro ao método, antes romanceado, agora sem romantismo algum. Nem sofismas, assim espero, o tratamento consiste em escrever uma autobiografia, trazendo para a consciência, atos, pensamentos e sentimentos do cotidiano que poderão revelar-se preponderantes na melhora de pacientes com comportamentos compulsivos, sendo no meu caso, provar legítima defesa.
Falar de minha infância? Nunca. Fundamento que tal gesto poderia abalar minha imagem. Tenho nome, fama e patrimônio a zelar. Como profissional precavido que sou, parto da premissa de que estes escritos nas mãos erradas poderiam significar o fim. Me aterei aos fatos últimos e mais importantes, antes porém, devo salientar que não tenho propósitos de literatura, nem teria atrevimentos para tal.
Meu relato inicio dizendo, ou melhor escrevendo: que vinha sofrendo de estranhas intercorrências. Visão de vultos e sombras pela casa em plena luz do dia. Logo de início imaginei ser uma espécie de válvula escapatória depois de fatigante noite de estudo. O problema é que eles tomaram proporções preocupantes, a cada dia mais obsessivos, ou obsessores. Cabe esclarecer que nunca fui dado a crenças que se relacionem ao transcendental. Somente creio nos fatos.
Cheguei ao ponto de desconfiar de minha saúde mental. Idéia já descartada, dada minha condição de visionário e intelectual. Então percebi que tais sensações eram apenas o prelúdio de ocorrências mais, digamos, funestas. Vozes. Começaram a me perseguir. A princípio pareciam-me do Sr. Jonas, um novo paciente que apareceu no consultório mês passado. Mas seria impossível, se considerar que me encontrava sozinho no aconchego da sala de estar, fumando meu charuto, inebriado por Wagner, tendo minhas maiores inspirações.
Voz difusa, encoberta, à primeira vista intentada a me assustar, me enlouquecer. Apropriado de minhas altas capacidades profissionais, não me deixei abater, fiz anotações, tentei virar a página. O que não foi possível dada a recorrência dos acontecimentos. Nervos à flor da pele, o desequilíbrio emocional começava evidenciar-se em uma fisionomia antes impecável. Em sessão com Sr. Jonas o inquiri sobre possíveis visitas à minha casa, inclusive no meio da madrugada. Alegava-me, o homem, desconhecer o endereço, não obstante tivesse, eu, verificado um certo risinho no canto de sua boca. Diante de sua enfática negação, restei de mãos atadas, e o excluí de minhas desconfianças.
Ainda tentei conjeturar possibilidades com minha esposa, que já havia notado meu jeito assustado e alerta. Julgando-me neurótico, sofrendo de alucinações, ou talvez possuído, a infeliz usou este termo, me sugeriu visitar um amigo psiquiatra. Observei certo nervosismo em seu tom, costumeiramente apático e insignificante. Irritado, refutei tais investidas.
Semana depois, ao chegar em casa, fora do horário habitual, constatei que as vozes haviam se multiplicado. Inconformado, fui em busca de um gravador, teste derradeiro de minhas faculdades mentais. Qual não foi a surpresa ao deparar com Sr Jonas a deleitar-se com minha esposa em nossos lençóis. Aplacado, com tamanha estupefação, acabei deixando de lado meus métodos psicanalíticos tradicionais, para submetê-los a uma terapia de choque, ou a base de choques, pouca diferença faz agora. Tratamento importado por meu primo, recém chegado da grande guerra, que julguei deveras eficiente. O problema se deu porque o casal adultero se mostrava de organismo muito sensível, evoluindo para um quadro de êxito letal.Trazendo-me então ao presente questionamento por parte da policia.
Acredito que as informações fornecidas até aqui sejam provas contundentes de minha boa fé desde o início, vitima de um imbróglio. Não vendo mais necessidade em continuar expondo minha vida, encerro meu relato, mas não o experimento. Entrego estes autos ao meu advogado  na certeza de que logo deixarei esta delegacia infecta, podendo assim reassumir as funções psiquiátricas e minhas pesquisas no restabelecimento das pobres mentes doentias através da autobiografia.

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