terça-feira, 10 de março de 2015

Ensaio sobre o risco



Torre de Babel


E arriscar-se seja como o risco que se faz no papel em branco no escuro, nem tão cego assim. E o risco que se corre por não saber se o risco do lápis que atravessa o papel, está onde deveria estar, seja uma questão de referência, uma questão de se atender às demandas pré definidas: do que se deve ser, do que se quer poder, do que é certo ter, do que é errado querer... Do que esperam de ti.
A vantagem das crianças é a despretensão com a vida, o descompromisso com o erro (embora algumas já afetadas pelos temores maternos e paternos ainda no berço não sejam assim, infelizmente). É a capacidade do tal “um dia de cada vez”. E arriscar-se, para elas, passa ser a simples falta da compreensão dos significados porque vivem dos significantes, do que dá o sentido.
E seja o excesso dessas compreensões que se adquire ao longo do tempo, faça com que as coisas se compliquem.  Se por um lado, adultos pensantes necessariamente precisam do entendimento para que possam evoluir em tantos aspectos, por outro, aprisiona.
E arriscar-se seja a medida exata do quanto se caminha com os pés no chão ou nas nuvens. O quanto se vive de realidade, ou de ilusão. E aí corre-se o risco dos enovelados filosóficos: afinal de contas o que é a realidade? Se partir do princípio que todos são iguais enquanto espécie humana, são tão diversos na essência. O que é imprescindível pra ti talvez não seja pra mim, e a felicidade pra ti talvez não venha na mesma embalagem que pra mim...E por aí se vai, abrindo milhares de parênteses, colocando uma série de virgulas, dando volta nas palavras para se chegar a conclusão de que tudo depende.
Histórias de vidas alheias, são boas histórias alheias, possam elas até despertar alguma coragem, mas apenas isto? Porque afinal de contas historias podem se repetir! Mas aí pensar que seres humanos são perfeitos repetidores de modelos familiares, próprios e de outros desconhecidos; os mesmos temores, desejos, a mesma busca: o sucesso, o olhar, reconhecimento, amparo.  Seres que são espelhos, uns para os outros, refletindo imagens nem sempre reais, nem sempre fiéis, e aí corre-se o risco da sensação de estagnação, dos sentimentos pouco construtivos, de não sentir vida correndo nas veias.
E arriscar-se seja exatamente a quebra dos modelos pré concebidos, a conquista da liberdade, aquela, a verdadeira, a que desamarra sem exigir nada em troca.
E arriscar-se seja o não se importar com o resultado, e sim com as escolhas, a autossuficiência delas, e depois adquirir condição de se conviver com as consequências. A simples lei da ação e reação, talvez colocada de forma menos opressora.
E arriscar-se seja descobrir um mundo de possibilidades e não apenas um salto no tal escuro do papel, talvez um voo livre ao encontro do destino. Porque ele sempre estará lá. Não há escapatória! E seja esta a melhor e mais legítima defesa para os que se arriscam, o que justifica, saber que ele, o destino, dará um jeito em tudo, eximindo o consciente arriscador de qualquer arrependimento.
E arriscar-se seja livrar-se das culpas, dos medos, porque o medo de arriscar  possa ser apenas o medo  de se perder o medo: medo de viver, de ser feliz. Afinal ele, o medo, estranhamente conforta, oferece chão supostamente seguro para se pisar, retém, restringe, assegura.
E arriscar-se seja dar-se conta da dureza deste chão, ter a certeza de que depois da  queda nesta concretude, não se pode ir além. Impossível cair da queda, ultrapassar o chão. A partir daí, o risco deixa de ser risco para tornar-se linha, torna-se passo. E todo o resto seja uma questão de ponto de vista.

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Um pedido. Um presente

Cezzane


Um pedido. Que as palavras, hoje, não signifiquem. Apenas sejam. Apenas toquem. Sem qualquer temor com os clichês, preocupação com a forma. Sem mensagens subliminares. Só mensagens. Sem engenharias mirabolantes, só palavras. Emprestadas do universo, organizadas no papel, ainda que em desordem. Palavras que se façam à partir do pensamento mais primário, mais isento das turbulências do mundo lá fora, mais genuíno. Daquele que talvez nem Buda tenha sido capaz.
Mas hoje, que se faça um milagre, e a vida só seja. Intensa. Inteira. Apenas exista. Descomplicada, mesmo sem a elegância que se desejaria, assim crua e desarrumada como ao levantar-se da cama pela manhã.
Livre. Ainda que para tal liberdade seja necessário sentir-se presa. A um sentimento, um pensamento, ao papel. Porque as palavras somente libertam-se quando presas ao papel, ensanguentadas de tinta, dependentes de seu interlocutor.
Então que seja ele, hoje, a somente ser. Inteiro. Intenso. E capaz do olhar antes do olhar. Apenas lá. Prevendo, predestinado, observando, agudo, preciso, presente.
Um presente. Mais um ano num amontoado de anos mal vividos em amontoadas palavras ainda não apreendidas. Tanto a se fazer, tão pouco tempo dada a infinidade já perdida até aqui.
Que hoje, à partir de hoje, as palavras pululem e apenas sejam, e possam assim ensanguentar de vida seu interlocutor, que possa assim olhar. Olhar-se. E ainda que não se conheça, deixar-se. Só de viver. Só de existir. Somente.

sábado, 24 de janeiro de 2015

Escolhas

Picasso



Tantas portas. Tantas, de perder de vista. Por todos os lados, portas.
É estranho saber dentre elas a minha. Simplesmente sei. A mais estreita. No fundo. Nem à esquerda, nem à direita. No fundo. A estreita.
E logo eu, que tenho andado tão fora do peso tão fora do prumo, que não passo ali. Não sem sofrimento. Esvaziar assim uma das mãos para caber no vão, poder passar.
Do outro lado, o elixir. É bebida doce, que de tão doce amarga, a boca ludibriada pelo sabor da paixão, por um mórbido prazer, exaustão.
E qualquer coisa que se diga, é da boca para fora. Qualquer coisa que se faça, é da porta para fora. Porque ela é estreita, assim como meu coração. Estreito, teimoso, meio quente meio morno que não aceita pulsar outro ritmo, outra nota. Minha porta. Estreita. Nem à esquerda, nem à direita. No fundo.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

Uma breve oração




 
Marc Chagall


Procuro dentro de mim, seu lado vil. Nada encontro além de minha própria vilania. Quase pueril. Fria e pueril. Dessas crueldades que as crianças fazem sem a intenção de fazer. Sinto culpa.
E aí se eu soubesse uma oração... Seria de joelhos por ti. Seria para nos conceder o perdão. Seria enfim para compreender as palavras benditas e exaustivamente repetidas, porque foram feitas apenas para serem repetidas, incansavelmente repetidas como penitência, como punição.
Mas é que eu não sei nenhuma... É que eu ainda não pude me perdoar, me permitir, pedir perdão, ainda não.

domingo, 30 de novembro de 2014

Dilema


Edvard Munch



E se agora eu te esquecesse. E se eu apenas fugisse pra não ter de chorar. Mas e se o choro me perseguir, me alcançar, me lavar. E se eu não resistir.

E se agora eu te amasse. E se eu apenas negasse pra não ter de chorar. Mas e se o amor me perseguir, seu olhar me encontrar, me olhar. E se eu não resistir.

E se agora eu te dissesse tudo. E se eu apenas calasse pra não ter de chorar. Mas e se a palavra me perseguir, me invadir, me entontecer. E se eu não resistir.

E se agora eu te inexistisse. E se eu apenas fingisse para não ter de chorar. Mas e se o silêncio me perseguir, me redimir, depois me deixar. E se eu não resistir.

E se agora você em mim. E se você me fizer chorar. E se o choro não se extinguir, me consumir, me fizer te amar. E se eu não resistir. E se eu não resistir.

domingo, 23 de novembro de 2014

Constatação

Anselm Feuerbach



E de repente te sinto, inteiro, como fosse uma possessão. Pressinto o teu desespero, teu temor insuportável, que por um instante torna-se meu temor insuportável.
E você insiste. Persegue minha sombra e a ela se funde, fazendo-me duvidar do que vejo.
Como piche, gruda-me na alma. Improvável de ser descolado, escurece-a, sufoca-a.
Aqui não há ar suficiente para nós dois. O oxigênio que resta apenas potencializa a combustão. Labaredas que consomem, marcam na pele cicatrizes horrorosas.
Já sabemos o final da história ainda antes do livro ser aberto. Porque a paixão é clichê, o egoísmo é intrínseco, a dor é pungente.
Quem sabe morremos. Quem sabe a libertação não venha no momento em que o corpo não tiver mais utilidade além da carcaça do que já foi, os prazeres tiverem definhado no frio do que talvez nunca tenha sido.
É uma pena que não seja. Uma pena que não tenha sido. Uma pena ter de morrer. Uma pena já ter morrido.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Lucidez


Salvador Dali


Te busco onde inexisto. E tua sombra arredia funde-se ao imponderável do meu corpo. Por um segundo somos vulto, melodia que brisa, que passa. Desintegra-se.
Te desejo no impossível. E teu vazio funde-se ao meu. Por um segundo somos corpo, matéria, um novo planeta só nosso, que brilha estrela. Apaga-se.
Te compreendo na obviedade. E tua crueza funde-se a minha essência. Tua essência funde-se a minha crueza. Por um segundo somos nós mesmos, desnudados em carne viva, coração que espanca dentro do peito, colapsa.
Te perco na primeira escuridão. No tremeluzir inevitável das pálpebras. E tua imagem desfocada funde-se ao meu devaneio. Por um segundo somos apenas um. Imagem que deslumbra, solitude que sufoca, cega.
Te desisto. E tua insistência funde-se a minha impossibilidade, me invade o sossego. Escorrego palavras da mente. No vale do silêncio procuro abrigo. Por um segundo não posso... Simplesmente não posso mais.