Edvard Munch |
Psiquiatra sou por persuasão, Sigismundo por
imposição, Shineider por maldição. Casado por falta de opção. Embora este
último não valha de grande relevância para os autos. Competente, seja essa
minha certeza, e a tenho, sou profundo estudioso da psique humana. Como
cientista engajado, sirvo de cobaia para meus inventos. Posto que meu não o
seja, confesso, trago da ficção algo possivelmente revolucionário.
Trata-se
de um experimento. Subtraído das páginas de um certo autor italiano. E
agora, como último recurso de minha salvação recorro ao método, antes
romanceado, agora sem romantismo algum. Nem sofismas, assim espero, o
tratamento consiste em escrever uma autobiografia, trazendo para a consciência,
atos, pensamentos e sentimentos do cotidiano que poderão revelar-se
preponderantes na melhora de pacientes com comportamentos compulsivos, sendo no
meu caso, provar legítima defesa.
Falar de minha infância? Nunca. Fundamento que
tal gesto poderia abalar minha imagem. Tenho nome, fama e patrimônio a zelar. Como
profissional precavido que sou, parto da premissa de que estes escritos nas
mãos erradas poderiam significar o fim. Me aterei aos fatos últimos e mais
importantes, antes porém, devo salientar que não tenho propósitos de
literatura, nem teria atrevimentos para tal.
Meu relato inicio dizendo, ou melhor escrevendo:
que vinha sofrendo de estranhas intercorrências. Visão de vultos e sombras pela
casa em plena luz do dia. Logo de início imaginei ser uma espécie de válvula
escapatória depois de fatigante noite de estudo. O problema é que eles tomaram
proporções preocupantes, a cada dia mais obsessivos, ou obsessores. Cabe
esclarecer que nunca fui dado a crenças que se relacionem ao transcendental.
Somente creio nos fatos.
Cheguei ao ponto de desconfiar de minha saúde
mental. Idéia já descartada, dada minha condição de visionário e intelectual.
Então percebi que tais sensações eram apenas o prelúdio de ocorrências mais,
digamos, funestas. Vozes. Começaram a me perseguir. A princípio pareciam-me do
Sr. Jonas, um novo paciente que apareceu no consultório mês passado. Mas seria
impossível, se considerar que me encontrava sozinho no aconchego da sala de
estar, fumando meu charuto, inebriado por Wagner, tendo minhas maiores
inspirações.
Voz difusa, encoberta, à primeira vista
intentada a me assustar, me enlouquecer. Apropriado de minhas altas capacidades
profissionais, não me deixei abater, fiz anotações, tentei virar a página. O
que não foi possível dada a recorrência dos acontecimentos. Nervos à flor da
pele, o desequilíbrio emocional começava evidenciar-se em uma fisionomia antes
impecável. Em sessão com Sr. Jonas o inquiri sobre possíveis visitas à minha
casa, inclusive no meio da madrugada. Alegava-me, o homem, desconhecer o
endereço, não obstante tivesse, eu, verificado um certo risinho no canto de sua
boca. Diante de sua enfática negação, restei de mãos atadas, e o excluí de
minhas desconfianças.
Ainda tentei conjeturar possibilidades com
minha esposa, que já havia notado meu jeito assustado e alerta. Julgando-me
neurótico, sofrendo de alucinações, ou talvez possuído, a infeliz usou este
termo, me sugeriu visitar um amigo psiquiatra. Observei certo nervosismo em seu
tom, costumeiramente apático e insignificante. Irritado, refutei tais
investidas.
Semana depois, ao chegar em casa, fora do
horário habitual, constatei que as vozes haviam se multiplicado. Inconformado,
fui em busca de um gravador, teste derradeiro de minhas faculdades mentais.
Qual não foi a surpresa ao deparar com Sr Jonas a deleitar-se com minha esposa
em nossos lençóis. Aplacado, com tamanha estupefação, acabei deixando de lado
meus métodos psicanalíticos tradicionais, para submetê-los a uma terapia de
choque, ou a base de choques, pouca diferença faz agora. Tratamento importado
por meu primo, recém chegado da grande guerra, que julguei deveras eficiente. O
problema se deu porque o casal adultero se mostrava de organismo muito
sensível, evoluindo para um quadro de êxito letal.Trazendo-me então ao presente
questionamento por parte da policia.
Acredito que as informações fornecidas até aqui
sejam provas contundentes de minha boa fé desde o início, vitima de um
imbróglio. Não vendo mais necessidade em continuar expondo minha vida, encerro meu
relato, mas não o experimento. Entrego estes autos ao meu advogado na certeza de que logo deixarei esta
delegacia infecta, podendo assim reassumir as funções psiquiátricas e minhas
pesquisas no restabelecimento das pobres mentes doentias através da
autobiografia.