Degas |
Toda história precisa de um começo, meio e
fim. Era assim que ele entendia sua criação. E seja este, o meio de algo que
teve seu início lá trás, no lapso de uma inspiração despretensiosa, assim,
quase que por descuido. Dessas coisas que acontecem sem explicação alguma.
Garoa fria, brisa fina. Na vista distante,
as águas ouvidas em ritmados instantes a debruçarem-se nas areias da praia solitária.
Era este o tom em consonância com a melodia triste: três cordas e um piano na
sala vazia que transbordava melancolia por todos os poros e o acolhia,
recostado à poltrona, no centro de si, no âmago do mundo, logo ali. Dentro.
Um clássico. Um compositor contemporâneo.
Notas que se transmutavam e o transportavam e se misturavam canonicamente à
explosão das ondas lá fora. Ele, permanecia de olhos fechados e em sua
escuridão particular era possível compreender-se, entregar-se ao tal sentimento
que antes não fora capaz de definir.
Movimentos que nasciam desta descoberta.
Espaços preenchidos em tempos de oito. Corpos significando gestos alongados na
busca da iluminação, em seguida contorcidos e arredondados como quem tentasse
resguardar a alma de ferimento mortal.
A história de uma dor, talvez a saga de um
amor, impossível, porque somente os amores impossíveis são eternos... E no
palco a música ganha corpo, corpos ganham musicalidade, rastros de poesia,
romântica intensidade.
Nos pensamentos dele, a dança ganha
história, a história ganha vida: três bailarinos, três bailarinas, passos, porté, renversé, brisé... ele tem o
ímpeto de juntar-se ao espetáculo, mas continua a residir em sua mente,
resignado à sua última arte, sua inspiração criativa. E os movimentos seguem,
intercalando-se entre homens e mulheres, chegam ao ápice, envolvidos e conscientes
da paixão que se desnuda através dos olhares e das mãos, que se desenham e
acariciam e traduzem palavras e juras silenciosas.
E como toda historia que chega ao seu final.
E como todo amor que mata. A música soa seus acordes derradeiros, os bailarinos
alçam o último voo, o último entrelaçar de corpos, o fim. Um amor, que por amor
morre enfim, assim eterno como deve ser.
Uma única lágrima para expressar toda a
carga dessa emoção. Os desejados aplausos. O vazio, então. E ele, ainda no
impulso do último ato, impregnado pelos resquícios do que nasceu, contudo,
terminado morreu, para viver, agora de olhos abertos admira a paisagem quase
noturna, quase Chopin. Da varanda deixa-se invadir pela brisa fina, a garoa
mais intensa ainda fria, as ondas cadenciadas e monótonas que incansáveis
explodem nas areias da praia solitária. Agora é real. Criador e criatura.