sábado, 1 de novembro de 2014

O amor

C.Cenot


E de não saber o que era o amor, afoguei-me no oceano sem águas. Perdi o ar e senti a leveza da inconsciência, da realidade fora do corpo.

E de não saber o que era o amor, deixei-o passar, absorta nas sensações do fogo que me ardeu. Restei cinzas.

O amor? Não sei se aconteceu, se alguma vez aconteceu. Amor sem fim. Amor tem fim. Começo, meio e fim.

E de não saber o que era o amor, não me dei conta de que morria, eu, anuviada de não o ter vivido.

E de não saber o que era o amor, descrevi-o em palavras: perfeito. Desfeito, incerto, puído, bordado, florido, na frase, na rima, só pra mim.

E agora, de não saber o que é o amor, aborto-o, esvazio-me e sigo e vivo. Procuro-o, escondo-me. Não quero saber se é amor.

Auto retrato


Elvira Amrhein



Se tenho asas e não posso voar! Se tenho olhos e não posso ver! É tudo por causa do que me nego, e cega assim, às vezes me entrego, me perco. Então caminho pra não ter de voar, confundo rostos, sentimentos. Amo o vento como fosse brisa do mar, aceno convicta pra quem não conheço, às vezes ninguém está lá.

Como uma louca com asas que se nega a voar. Somente uma louca com asas se negaria, assim, a voar! Porque não vê, pressente. E a dor, dói tanto que cala. A alegria, de ser tão alegre, dói.

De repente tudo foge ao controle, a roda se põe a girar, asas assumem vida própria, levantam voo à revelia. Maldigo o vento, o tempo, a sorte, o destino. Respiro o antigo, peso o corpo, não vejo, me perco, me nego.

Amo o engano, aceno pra quem não conheço, desfaleço. Não posso voar!

sábado, 25 de outubro de 2014

Morte Iminente



Paul Cezanne


O que me mata, não são seus olhos insinceros, sua verdade leviana e insegura, os mecanismos torpes do seu pensar.

O que me mata, não são suas intenções duvidosas, seu humor quase premeditado, seu jeito de olhar ignorando tudo.

O que me mata, não é a falta de expectativa, suas palavras não ditas, seu fogo gelado, seu peito vazio, seus infortúnios.

O que me mata, é compreender tudo isso. E de compreender, duvidar de mim mesma. E de compreender, reconhecer-me no espelho e não conhecer-me mais.

O que me mata, é a culpa que de tua fica minha. O disparate de pensar que poderia te ter em sua melhor versão e de te ter, me ter. Quem sabe resgatar para o meu corpo pedaços de alma, que displicente fui perdendo por aí...

É tudo isso que me mata.

sábado, 27 de setembro de 2014

Adormecidos


 
Jonh Melhuish

 E quando o dia, cansado de ser sol, despertar noite num quase sorriso da lua, é quando irei em seu encalço.
Ainda que tudo conspire contra e às fadas do conto isto inspire afronta, eu assim abandonada à própria sorte, irei em seu encalço.
Sei que é lá no alto da colina, na torre solitária do castelo que já ruiu, que nunca existiu, é onde você está. Murada que te mantém. Você vilão, você refém, que descansa embalado pela cantiga. Quem dera fosse um ninar... E dormindo pudéssemos acordar... Mas amaldiçoados que fomos!
Calado, joelhos ao chão, pesadas são as cordas que escalpelam a alma, já sem pele, é carne viva que te expõe os segredos mais indizíveis. Não pode amar. É por causa da dor. Não pode ser amado.
E eu, sem muito compreender meus passos, propósitos indemarcados no pensamento, assim como as pegadas que diluem-se no caminho lamacento, mal me sustento... Sentimento que não quer sentir e sente, passo que não quer seguir e segue.
Chamo seu nome e tudo passa a ser por causa do seu nome. Apenas vou em seu encalço sem importar que seja noite e a lua não mais queira me guiar, as fadas se recusem a este conto e só façam me amaldiçoar, ainda assim, ainda exausta, eu persistirei.
Escalarei as paredes escorregadias e petrificadas que te cercam o peito, chegarei ao seu rosto amortecido, ausente, e contemplarei seus lábios com tanta doçura, amor sublime que buscarei além deste mundo e devotarei todo ele num beijo.
E quem sabe seu beijo me desperte deste sono de cem anos me liberte, me salve de mim mesma.
E possa eu finalmente acreditar em contos de fadas, em príncipes, no amor eterno.

domingo, 6 de abril de 2014

Sobre a morte de Clarisse

Hovsep Pushman

Clarisse me oprimia. Jeito de menear a cabeça me dando de ombros, queixo em riste. Olhos atentos que me ignoravam na intenção de me ignorar.
 
Clarisse me irritava, jeitinho de fragilidade, cheia de mãos gesticuladas à exaustão, caras e bocas que não revelavam palavras, apenas sombras de malícias num francês sustentado a muletas.

Clarisse me entristecia. Mania de atropelar sentimentos, palavras, idades, meu cachorro. Eu nunca a perdoei por isso.

Clarisse me dizia, se fazia, se gabava. Boa moça, boa família, boa conta bancária. Boa vadia, eu completava em pensamento.

Clarisse me descrevia. Gostava de escrever. Dizia ter o dom das entrelinhas, nascido com ele. Piada! Enquanto no papel difamava a mim mesma,  a ela mesma, a nós. Identidade insuportável. Coincidência de reflexos, apenas isto. Um espelho. Mas a farsante sempre foi ela.

Clarisse morria aos 27, porque assim era mais justo, e tinha Bach como trilha sonora. Empréstimo meu. Foi a mãe dela que pediu. Era seu último desejo. Meu maior desejo. Jesus Alegria dos Homens, e minha também. Justifiquei minha ausência: ”É que velórios me causam mal estar, uma espécie de pânico”. Simulei uma lágrima, a abracei convicta, “Meus pêsames”.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Confissão




Salvador Dali

E por falar no silêncio. E por falar na coragem. Tudo me falta, tudo me sobra, tudo me mata. E vivo morta. Meio viva, meio sem vida própria, cambaleando nos pensamentos sufocados pelo excesso de ar e de palavras. Vastidão de caminho a que chamam vida. Deserto onde se desenham veredas, vielas, mazelas, amores, florestas, para finalmente acabar deserto. Cada passo. Cada olhar. É preciso coragem. E se o que de mim querem é coragem, pois fico com o silêncio. E se me dizem que os pés funcionam a serviço do tempo, pois faço o contrário. E o pensar me arrasta distante como um louco desvairado, ignorando qualquer sentido horário, enquanto que o pés planto em profundas e antigas raízes, agarradas sempre no mesmo lugar. Teimosia danada. 
E mais uma vez o silêncio. Uma fuga. Um encontro derradeiro com a alma. Mas se é dela que fujo, é com ela que me deparo a todo minuto. Esperança de que as coisas tenham modificado tantinho que seja, um quase nada diferente. É tudo por conta do tal sentido de viver. Um, para fazer renascer da morte plena para vida sublimada.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Perplexidade



E se agora tudo fosse dito. E se agora o inaudito. Mas o tempo não há de deixar. Mas o vento não há de brisar. E quando o absurdo deixar-se adentrar. E quando o escuro voltar a iluminar, eu estarei aqui. Ainda serei eu na busca da completude. Compreendendo a insanidade cotidiana da sanidade, acertando as vírgulas nas frases desconexas, querendo palavras que definam o que não se vê, não se toca, e que me tange em pensamento obsessivo. O sentimento pungente, visceral tão presente tão vivo tão ausente que me deixa as mãos vazias, o coração murcho, batendo doído e a cabeça pulsando em taquicardia. Tão perto e impossível quanto a distância do que me pertence. E se o céu clarear. E se o sol insistir. Mas o tempo não há de deixar. Porque o tempo não há de porvir. Eu ainda estarei aqui. Imóvel no mesmo lugar. Incapaz do passo, decadente do traço. Deixar para trás. Fenecer.