quarta-feira, 13 de junho de 2012

Amor à moda antiga


Portinari


Lili morreu. Dor pungente. Mal necessário. Não quis velório. Detesto velório. O último foi o de mamãe, me obrigaram a ir. Eu tinha somente oito. Ela, somente trinta e três. Muito nova para morrer.  Seu semblante pálido, imóvel, amargo. Era amargura por me deixar para trás.

E no ápice de minha dor por Lili, questionei aquele sonho. Na época, eu tinha somente dez. Era noite de tempestade típica do verão. Lembro-me bem porque até o lençol me fervia os pés. E eu sonhei com aquela menina vindo ao meu encontro. Não sabia onde estavávamos, sabia apenas do olhar azulado, lindo! Seu nome Lili. Ela me dizia ao pé do ouvido, um dia vamos nos casar! Suas palavras entranhadas em meus sentidos, irreversíveis. E a brisa quente de seu sussurro, a gota de saliva que lhe escapava pelos lábios respigada em meu pescoço, a ponta de seu nariz roçando leve minha orelha aguçava-me desejo. Apaixonado, acordei.

Eu, somente vinte. Começo de tarde. Aqui na esquina da minha rua ela me pedia informação. Tinha ensaio de teatro na casa da Fernanda. A Fernanda morava no meu prédio. Coincidência, destino. E o nome dela, da moça que pedia informação, Lili. O olhos não eram azuis. E sim castanhos, mas a gota de saliva...Era ela. Tinha de ser. Ficamos amigos. Saímos eu, Lili e o grupo de teatro. Explicaram-me que preferiam os autores pós modernos, de pensamentos controversos, fragmentados, intensos de sentimentos, problemáticos. Sem aquele papo clichê, sem aquele amor clichê.

Eu me declarei para Lili. Mais shakespeariano impossível. Namoramos. Eu, somente vinte e um. Ela talvez por pena, já nem sei. Eu amava Lili desde os dez. Romanticamente antiquado. Fiz amor com Lili. Mas acho que ela preferia um sexo pós moderno. Tentei ser um pouco mais Jorge Amado, as coisas só pioraram. Perdi naturalidade. Perdi Lili. Que nunca foi minha de verdade. Eu, somente vinte e quatro. Ela foi embora com o Alfredo. Um amigo do teatro, um tipo pós moderno. Foi aí que Lili morreu. Morreu dentro de mim. Supressão. O Joca me disse, esquece esse maldito sonho, sonha outro no lugar. Me Falou de uma amiga, tal de Matilde. Tive esperança de que ela se chamasse Lili.

Ainda procurei Lili em alguns rostos. Dei de cara com Matilde, por insistência do Joca. Mulata de olhos azuis, me chamo Matilde. Fiquei impressionado. Quis dar um de pós moderno. A Matilde queria amor à moda antiga.

Eu, somente vinte e seis. Ela me pediu em namoro. Eu, perdido, aturdido, distraído, já nem sabia como agir. Lili e sua gota de saliva, seu hálito quente, seus amores, seus autores, seus vapores de pós moderna me roubaram o repertório, confundiram-me. Mas a doce Matilde, docemente mulata, azulada no olhar, sussurrou-me ao pé do ouvido, um dia vamos nos casar! A noite quente anunciava tempestade típica do verão.







segunda-feira, 11 de junho de 2012

Refúgio

Rembrandt


Habito na ausência. Meu lugar favorito, de silêncio imperturbável. Mas de repente o impulso, que não se pode controlar, o salto.  Mergulho de cabeça que é para alcançar os pés no chão. E passo horas a decodificar pensamentos,  procuro palavras que os façam grandiosos, sublimes. Mas é que no papel tudo mingua, perde a cor de meus devaneios, e o que era silêncio se torna o refrão de algo que o mundo canta, que se impõe, invasivo, agressivo, dentro de mim. O barulho é ensurdecedor e diante disto a que chamam realidade, retraio. Minhas palavras estão enfraquecidas, meus pensamentos perderam o sentido, em mim tudo se abala, por um segundo deixo de ser eu mesma. É quando mergulho para o alto, de volta para meu refúgio, minha paz inabalável, retorno para ausência. Meu lugar preferido.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Relatos de uma anarquista - parte 10 (Quarteto de cordas)

Caravaggio


Se abro os olhos de rompante é por conta de Schubert, que invade meu quarto por entre frestas da janela, por todos os poros da casa. E resto confusa, pudesse ser hoje segunda feira, o dia em que morria meu pai?! Foi o médico em pessoa quem ligou. Queria falar com Dona Antonella. Disse com voz titubeante, não me esperava tão jovem. Que eu voltasse ao hospital, a situação se complicava. Não teve coragem de dizer ali mesmo ao telefone que meu pai não me esperava mais. E eu que tinha passado em casa para um banho, pegar outra muda de roupa e voltar para junto dele. Não houve tempo, talvez eu que não tivesse entendido que era o tempo a se alongar demais. Boba, menina boba! Fico pensando que seu Ângelo constrangido em dar o adeus pudesse ter feito tudo de caso pensado, se é que se pode morrer de caso pensado. Ou fosse minha mãe, morta três  anos antes dele, que aproveitando minha ausência o levasse assim meio distraído, e ele sem se dar conta, tivesse ido, encantado por sua beleza.

Diante de meu pai morto, lembrei de Yolanda. Quando saí para o hospital ainda pude vê-la de relance através da janela. Estava em sua sala de musica, ouvia Schubert  quarteto de cordas. Costumávamos ouvir juntas depois da escola. Nos inspirava nas tarefas. Achei melhor não incomodá-la. Falei com Seu Alejandro, que por coincidência chegava naquele instante. O amigo de meu pai e pai de Yolanda não se conformava. Não se despediu, baixou a cabeça foi ter com a filha, vi quando lhe dava a notícia, gesticulando, levando as mãos à cabeça como que tentando arrancar de si toda aquela dor, pela raiz dos cabelos. Não esperei a reação de Yolanda, acelerei o passo. Não a considerava mais minha amiga desde que marcara casamento com Otávio.

Já no necrotério, me chamaram no guichê. Falava pelo buraco no vidro, a mulher negra de cabelo desgrenhado, impaciente, jeito de infelicidade. A voz sussurrada não desgrudava os olhos daquele papel como não soubesse de cor cada frase ali escrita. Fosse constrangimento de trabalhar com mortos ou sempre pesarosa por cada família que chorava ali, a mulher me fazia colar o ouvido no vácuo , na expectativa de decifrar seus murmúrios amargados por um hálito de embrulhar o estômago. Tinha que reconhecer o morto. E repetiu, dessa vez  com uma clareza na voz que poucas vezes ouvi. Tinha que reconhecer o morto.

Era o amargor de seu hálito que me tomou o corpo todo a ponto de amolecer braços e pernas. E a voz empostada e segura que dizia, “Vá e reconheça seu morto! Pegue os pertences dele que estão embaixo do lençol, volte e assine o papel” Com a naturalidade com que se para de respirar ou se vai a um bom restaurante, ou a uma apresentação de balé clássico. Era eu, dramática sofrida. Preterida, para atrás, perdida nas partituras de Schubert, sem entender as emendas e sem deixar que fluíssem. O silêncio entre as notas, a vida e a morte.

Meu pai era o quarto daquela fila de pés arroxeados. Pés que de nada mais serviam, além da mera identificação de quem os carregou a vida toda e imagino, hoje, o constrangimento da moça que ao meu lado entrou para o reconhecimento de seu morto e tomada pelo desespero, equivocou-se de pés, lágrimas que molhavam o cadáver de outro ou até mesmo de ninguém. E da forma desatinada que adentrou a sala, assim que percebeu seu engano, saiu mais corrida ainda. Quis rir, mas é que meus sentidos estavam sob o efeito do hálito da atendente. Quedei ali, ao lado de meu pai. Nosso derradeiro adeus. Nosso último silêncio juntos. Descobri seu rosto, e em seu semblante o descobri bem distante daquela couraça. E livre das amarras do corpo, provável que já estivesse noutro lugar. Sei que Henrique teria uma boa teoria para tudo aquilo se lá estivesse, mas é que ele fazia o caminho inverso de meu pai, neto aguardado com grande felicidade por Seu Alejandro.

E na rua caminhei um pouco, sem rumo que fosse, no rumo de casa, mas dessa vez apreciando as paisagens que sempre se perderam nos olhos tão viciados e programados pelo relógio. Vi pessoas que passavam por mim, através de mim. Procurei nos rostos reconhecer alguém, que acabado o enterro do ente querido, estivesse voltando para as corriqueirices, o anonimato, a casa vazia que se encheria de toda aquela angústia tão inconveniente. E depois de um banho relaxante, sentada à mesa, talvez escrevendo um texto tão bom ou melhor que os de Yolanda, até o último suspiro, o último ponto, o ponto final, com a naturalidade com que se enterra um pai.

Tive esperança que Yolanda ao dar-se conta da notícia tivesse trocado Schubert por Bach, ou quem sabe Albinoni, como forma de homenagem. Derradeira homenagem. Sabia de sua admiração por  Seu Ângelo. Causava-me ciúme seu interesse pelas experiências anarquistas de meu pai. Yolanda nunca seria a anarquista que fui. Ela nada tinha correndo em suas veias, além da frieza. Mas por meu pai talvez lamentasse.

A tortura do velório enfraquecera-me  a ponto  de desejar estar ali deitada ao lado dele. Recostada em seu ombro como quando pequena e então poderia ele contar-me algumas de suas histórias, me acalentar de leve os cabelos, e depois de adormecer, com a gentileza de suas mãos me pegaria nos braços, me deitaria na cama com a preocupação de cobrir-me para que nenhuma brisa mais fresca resfriasse meu corpo. E com um beijo na testa descansaria para todo sempre.

Vi quando Otávio e Yolanda saíram juntos. Ela, grávida de poucos meses, sentia-se mal, precisava de ar. Enquanto que eu, sufocada com o cheiro das flores que apodreciam a cada minuto não podia me afastar, porque era diante de meu pai morto que tinha a exata noção de minha existência e de minha pequeneza diante dela. Pouco importava o amor que sentia por aquele homem que se casaria em alguns dias com minha amiga mais querida.

Homem esse que pouco vi viver e não vi morrer, não enterrei nem sei se é mesmo morto. E a naturalidade que de nada me serviu, deixa a esperança latente, ou seja Schubert a me renovar o espírito. Estou certa de que neste exato momento Yolanda pensa em mim, por conta do diário, ou não. Mas que seja ela a me procurar! Ainda me resta boa parte do dia. Quero o vestido mais bonito, ser a mais bela. Hoje, Jonas vem para o jantar.


 

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Relatos de uma anarquista - parte 9 (O último conto)

Marc Chagall

Habito o espaço das lembranças. Sei que aqui tenho corpo, tenho alma, tenho vida, tenho Otávio ainda. Lá fora, a selva vazia de suas feras, de seus ruídos é que me amedrontam, me arrebatam. Fico no lapso, sobrevivo no lapso. Sinto-me fraca.

E da vez em que Henrique me perguntava sobre a morte, me dizia que alguém lhe tinha dito que morremos e tornamos a nascer várias vidas, diferentes nomes, diferentes famílias, diferentes amores, outras experiências. Sorri, mas nada disse. Me dava conta de que morri e nasci por diversas vezes nesta mesma vida e para isto não haveria resposta.

Talvez agora esteja morta, num momento de reminiscência. As roupas sobram no corpo. Nada me agrada, me compõe com a fidelidade que mereço. Nem me evidenciam as curvas nem minhas intenções, meu estado de espírito.

O azul marinho com bolinhas brancas parece novo, pouquíssimo usado embora seja de meia estação, fujo dele. E corro os olhos no vermelho, no floral, no estampado quem sabe o verde, são tantos vestidos. Volto para o marinho com bolinhas brancas. Ainda serve. A última vez que o usei foi no dia de minha morte. No dia em que Otávio se foi para nunca mais. E ele queria que eu o acompanhasse para nunca mais... Não fui. Mas nunca por covardia, nunca por falta de amor. Era generosidade, Yolanda precisava de mim, Henrique precisava de mim.

Implorei a Otávio que se escondesse em minha casa, o lugar mais seguro por ser óbvio demais. Era 1974, muito perigoso para um anarquista que encabeçava a lista dos subversivos procurados, principalmente depois do episódio do banho de ovos na porta da escola de Henrique.  Era uma questão de tempo. Muito pouco tempo. A polícia o queria, eu o queria, acredito que no fundo Yolanda também o queria só não sabia como, provável que tenha se esquecido.

O marinho com bolinhas brancas tem caimento perfeito, adoro o laço que se dá na gola. Pareço mais jovem. E não seja conveniente aparecer assim diante de Yolanda. não a quero humilhar com minha juventude conservada. O reumatismo consumiu-lhe a pouca beleza que restava. Os cabelos já embranqueceram-lhe ainda mais o semblante cansado. Seus olhos parecem menores embaixo de pálpebras tão empapuçadas, pouco se vêem azuis. O nariz que tanto gostava de ostentar arrebitado agora voltou-se para baixo escancarando-lhe as abas. Ficou estranho, desfigurado. Sem falar nos bicos de papagaio que lhe atrofiaram a coluna cervical, deixando-a envergada de leve.

Que me devolva apenas. O exemplar do Guimarães, que se bem me lembro tem o marcador na página final do conto que li com Otávio da última vez. O último conto do "Corpo de Baile". A última noite que o tive em mim, só para mim. Ainda sinto o cheiro da noite estrelada, brisa morna que trazia os aromas do mato molhado pela chuva do final de tarde. Chuva de verão. Final de domingo.

Otávio sempre gostou de meus cabelos presos em coque. Deixava-me mais à mostra. Dizia dos traços de meu rosto, delicados e marcantes assim como eu, controversa, dissidente de mim mesma. Yolanda às vezes me olhava. Só olhava. Como quisesse copiar-me as feições, os detalhes. Mas logo disfarçava, mudava o tema, distraía o olhar.

A sensação de que cometo um grande erro me faz recuar. Mudo a roupa, mudo o cabelo, tiro a maquilagem. Perco a coragem. Volto para o espaço das lembranças, meu refúgio. Troquei a camisola por outra limpa. Tento fechar os olhos um pouco que seja. Não, obrigada, não quero almoçar.

Deitada com as mão cruzadas na altura da barriga talvez eu durma, talvez eu morra, morta que já estou. E ao acordar esteja renascida quiçá com outro nome, outra família, outro amor e possa por fim me livrar dessa dor pungente.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Relatos de uma anarquista - parte 8 (A festa que nunca aconteceu)

Salvador Dali

O ano era 1956. Esperava-se festa grandiosa. Juscelino chegava ao poder. Meu pai, debilitado pela doença, ainda dava ares de esperança. Queria viver o que acreditava ser o recomeço de um novo final, mais justo, mais verdadeiro e porque não duradouro. Ele morreu ainda antes da posse, porque nada dura para sempre e talvez dessa forma, Seu Ângelo tenha compreendido que tratava-se apenas do último suspiro.

O ano era 1956. Eu tinha dezoito. Filha única de pai e mãe falecidos. Esperava-se festa grandiosa. Seu Alejandro, pai de Yolanda, dividido entre a dor pela morte do melhor amigo e a impossibilidade de se esquivar do sorriso insistente no rosto. Era felicidade por casar a filha com jovem anarquista tão promitente.

O ano era 1956. Otávio tinha vinte e quatro. Formado no curso de história, era pesquisador da universidade. Na época estudava a imigração italiana no Brasil em seus primórdios, procurava vestígios de seus ascendentes anarquistas. Escrevia seu único livro, até onde sei, inacabado.

E chegava ao cartório, pontual. Vinha de táxi. Como chegasse ao velório de um ente querido, Otávio caminhava respeitoso ao aproximar-se da viúva. Com voz baixa talvez para omití-la embargada expressava suas sinceras condolências. Foi o "sim"que não ouvi e duvido que Yolanda o tenha.

O ano era 1956. Yolanda carregava Henrique no ventre. Feto, desafeto, miúdo, semente. Ela vestia uma túnica, que disfarçava o corpo que se deformava, com aplicação de bordados na gola e nas mangas. Corte da moda, mas nada de branco. Beige. Yolanda nunca se submeteria aos regimentos de religião que fosse. Foram direto ao finalmente. Ela dispensou o beijo tradicional dos noivos após a troca das alianças. Assinou o papel. Ainda teve tempo para me dar um abraço de melhores amigas, um beijo áspero na face. De braços dados, ela e Otávio faziam o caminho de volta até a porta do cartório onde o táxi que o trouxera ainda aguardava. Nele embarcaram sem olhar para atrás, partiram.

Os poucos convidados que ali estavam, restaram de pé como expectatdores a espera do final do espetáculo, do retorno dos artistas ao palco para última salva de aplausos. Mas a festa nunca aconteceu. O velho Alejandro na tentativa de sustentar o clima de celebração, jogava conversas despropositadas sem fixar-se no que dizia. A persistência do velho me comovia. Eram as gotas de suor precipitando na testa e nas têmporas. Sua segunda esposa, de tempo em tempo oferecia-lhe um lencinho para que pudesse se recompor, cada vez mais molhado e desequilibrado. Yolanda era filha de madrasta e ao que parece, de convívio atribulado. Fosse tudo aquilo por ódio daquela mulher que ocupava o lugar de sua mãe? Ninguém entendia.

Mas eu sim. Sabia o que passava na cabeça de Yolanda. Tripudiar-me em tom vitorioso. Desfilava Otávio como troféu. Carregava em seu ventre, o fruto dessa vitória. Enquanto que a mim caberia a resignação, o papel de madrinha desse grande feito. Para sempre sua coadjuvante.

Trinta anos se passaram. É apenas segunda-feira, 1986. A chuva deu uma trégua. O presidente eleito é morto com as esperanças de meu pai que ainda pairavam por aqui, nos restou um vice. A dor que sinto, sinto. não é pelo talho em minha mão que às vezes ainda sangra, não é pelo tempo que passou, nem pelo tempo que vivo. Tenho a impessão de que me atropelam pensamentos. Instinto de sobrevivência que não me deixa dormir um pouco que seja, é no banho que busco equilíbrio para depois encarar Yolanda.

Devolvo o diário, não justifico. Cordata, peço meu Guimarães de volta. Não haverá ganhador. Não haverá perdedor.

sábado, 27 de novembro de 2010

Relatos de uma anarquista - parte 7 (Espelho, espelho meu...)

Anita Malfatti

O encontro na escola foi casual. Tenho consciência tranquila. Otávio voltar para mim, era o destino que se fazia cumprir. Yolanda nada poderia fazer.

Minha camisola suja de sangue, joguei na cama,  no lado que Otávio ocupava quando aqui dormia. Tenho consciência tranquila. Mas o que me tira de prumo em tudo isso, é essa falta de ritmo. Não tem cadência como as palavras no texto de Yolanda.

Se o leio nua, em frente ao espelho, é para decifrar entrelinhas. Sei que é dali que flui musicalidade. Yolanda é abusada, não tem pudores do erro. É vingativa, maliciosa. Talvez seja esse seu segredo.

Ela nunca escreve de amor. Ela nunca falou de amor com Otávio. Tantas vezes o ouvi reclamar de sua frieza, de sua ausência de espírito. Me dizia tudo, enquanto afagava seus cabelos castanhos, deitado ao meu lado.

Eu o amparava. Supria sua necessidade de amor. Depois líamos um conto do Guimarães. Como eu, Otávio gostava de sua linguagem regionalista e desconstruída falando do universal... E inebriados por Guimarães conversávamos até o amanhecer.

Mas a maldade e o despeito de Yolanda não ficam restritos aos textos, as palavras. Um belo dia, tirou Otávio de mim para sempre. Carregou minha única boa lembrança, o meu exemplar do Guimarães, e o trancou em sua preciosa biblioteca.

Resto nua, em frente ao espelho, lendo seus textos torpes e bem escritos. Não bastasse isso, descubro que ela tem mais ritmo do que eu, mais vida do que eu, quiçá um corpo mais bonito do que o meu. 

E se agora eu perguntasse ao espelho, seria eu a madrasta má e ela a doce princesa?! Isso seria ridículo. Seria pequeno. Seria injusto.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Relatos de uma anarquista parte 6 (Era Otávio de volta)

Pablo Picasso

Segunda-feira de um dia longínquo, mas que me surge entre lembranças recentes, como papéis antigos que se perdem por aí e que são encontrados sem pretensão alguma, muito tempo depois.

Segunda-feira chuvosa. Mas eram ovadas que ensopavam os cabelos castanhos de Otávio. Depois de séculos sem notícias suas! Eu via Otávio entre gosmas e cascas que lhe escorriam pelo colarinho, terno abaixo. Como chuva fina que passa impermeável no tecido, e se amontoa em gotículas que não se desfazem, insistentes.

Na porta de tradicional colégio de São Paulo, Otávio aguardava a saída do filho. Queria vê-lo crescido, tentar uma reaproximação. Vivia clandestino em alguma cidade do interior desde que deixara Henrique, ainda bebê. Ele que já nem mais era membro ativo do movimento, teve o nome marcado quando da morte de um importante empresário da indústria têxtil alguns anos atrás. Noticiado nos jornais, Otávio tinha se tornado figura conhecida e non grata. Embora nunca tivesse se envolvido em violência ou atos de vandalismo, não foi ouvido. Não lhe foi dada  chance para defesa.

Na política, Otávio foi simpatizante do partido. Mas isso tinha sido antes dos campos de concentração de Stalin. Antes dos ideais suplantados pelo poder e ganância. Tornara-se professor de história. Um professor itinerante para sempre perseguido. Para sempre fugitivo. Por isso estaria ali, somente aquele dia.

Quando cheguei, o reconheci, tentava proteger-se com as mãos nuas, ora o corpo, ora o rosto. Inútil, pacífico. Eram ovadas preconceituosas, maledicentes. Ovos que carregavam dentro de si clara, gema e ignorância. Radicais direitistas atiravam ovos, desferiam ofensas, "anarquistas malditos", diziam os pedantocratas baderneiros, intolerantes deles mesmos.

Não me surpreendia tanta hostilidade, que já havia dado mostras nos boicotes e ameaças veladas, que Henrique sofria diariamente. E o colégio sempre esquivo, sofrendo da cegueira indecorosa típica dos consentidos. Eram incultura e repugnância que até então vinham embebidas na açucarada hipocrisia.

Pais dos delinquentes assistiam ao show, calados, como mandantes selvagens e sádicos. Porque via neles um prazer mórbido. Pessoas que se divertiam a humilhar outra, em nome da falsa sensação de poder. Ali não havia noções ou limites, eles eram pura expressão de ódio e frustração.

Eu, enlouquecida, entrava no colégio em busca de ajuda, explicações, punição severa, mas encontrava Henrique escondido atrás da mureta do jardim, no pátio central. É provável que tenha visto o momento do ataque, reconhecido o pai e fugido da humilhação. Pobre covarde. Seus colegas estavam certos. Ele era covarde. E pela primeira vez percebia toda a inexistência de Henrique, aos quinze anos de idade.

Os ovos cessavam. A multidão que passiva assistia, dispersava-se. A chuva apertava. Otávio continuava imóvel, inabalável no espírito, perplexo. Ainda me parecia tão lindo embora um pouco envelhecido. Eu o abracei. Nada disse. O cheiro do ovo, o odor das vinganças que não valiam à pena. Éramos anarquistas na alma, no olhar que tínhamos sobre o mundo, a humanidade. E ninguém nos tiraria esse privilégio. Tratava-se de uma herança cultural que nunca deixamos de acreditar, ainda que banhados em ovos, ainda que separados por Yolanda. Eu amava Otávio tanto quanto amava o anarquismo. Tanto quanto, hoje, admiro Guimarães, meu anarquista das palavras.

Os abriguei em minha casa. Emprestei roupas e a colônia preferida de meu falecido pai, para que Otávio pudesse se lavar e trocar o terno alvejado. Lhe indiquei o banheiro da suite, que ele já conhecia tão bem. Fui cuidar de Henrique, trocar-lhe as calças urinadas. Tantas vezes troquei suas fraldas quando pequeno. Agora eu o ajudava a se banhar, esfregava suas costas na tentativa de decifrar alguma vida dentro daquele corpo magro, de ombros murchos.

Conversei com Henrique. Que seu pai não havia reagido por conta de preservá-lo. O filho tão amado. Se reaparecia somente agora não era com propósito de causar confusões, era saudade. Vontade de recuperar um tempo, uma felicidade. Assim como ele, o pai sofria perseguições. Por amar e lutar por um ideal. Disse a Henrique que os preconceitos nada mais eram que formas intolerantes de expressão, apenas isso.

Ainda vivíamos em tempos difíceis. Não como de meu pai perseguido pelo Estado novo. La guerra era finita havia muito, mas era ainda um momento delicado para expressar certas ideias. Tínhamos um governo que nos arrancava a liberdade à pretextos paternalistas e de ordem, e que mascaravam ditadura cruel, cheia de egos e vaidades...

Henrique me olhava nos olhos mas nada apreendia. Estava distante a ponto de que se eu lhe estendesse meus braços, não poderia alcançá-lo. Ele estava no fundo, no escuro ou nem lá estivesse mais. Era desesperador porque me pedia ajuda, fosse talvez apenas o eco de minha própria voz. Mas era a campainha. Yolanda.

Das expressões do rosto de Yolanda, conheço todas. Os olhos arregalados que nunca eram de espanto. Os vincos na testa desmerecendo argumentos. A boca que de semi aberta se apertava entre os dentes como que querendo ocultar suas reais intenções, o que lhe repuxava e torcia de leve o nariz, talvez nojo de uma humanidade que julgava inferior e imperfeita. Yolanda não precisava das palavras, nunca precisou. Quanta incoerência!

Vindo de Yolanda! Entrava sem pedir licença. Invasiva como de costume, procurava Henrique que já estava banhado e trocado, descansava no sofá. Alguém lhe deve ter relatado o episódio, já que ela nem teve a decência de aparecer antes. Sua demonstração de compreensão foram dois tapinhas de leve na mão do filho que se levantava imediatamente como um robô a que se dá um comando.

Otávio já refeito e perfumado, aparecia no alto da escada. Não esperava ver Yolanda. Para ela não havia surpresas. Inexpressiva e serena lhe oferecia o braço desocupado. Ele veio ao seu encontro. Yolanda ainda teve tempo para esticar olhos para meu exemplar do Guimarães. Estava na mesinha onde hoje habita seu diário. Entortou a cabeça, identificou o título. Não se despediu, não agradeceu. Não fechou a porta. Com ares altivos, vinha tomar posse do que nunca foi seu.

Segunda-feira chuvosa. E fico admirada por estar a estas horas, ainda em frente ao espelho. Com a camisola que não dormi. É minha mão que acabei ferindo ao recolher os cacos no chão da cozinha. Manchou de sangue a camisola, sujou meu rosto. Mas não sinto dor. Não sinto nada.