terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Relatos de uma anarquista - parte 10 (Quarteto de cordas)

Caravaggio


Se abro os olhos de rompante é por conta de Schubert, que invade meu quarto por entre frestas da janela, por todos os poros da casa. E resto confusa, pudesse ser hoje segunda feira, o dia em que morria meu pai?! Foi o médico em pessoa quem ligou. Queria falar com Dona Antonella. Disse com voz titubeante, não me esperava tão jovem. Que eu voltasse ao hospital, a situação se complicava. Não teve coragem de dizer ali mesmo ao telefone que meu pai não me esperava mais. E eu que tinha passado em casa para um banho, pegar outra muda de roupa e voltar para junto dele. Não houve tempo, talvez eu que não tivesse entendido que era o tempo a se alongar demais. Boba, menina boba! Fico pensando que seu Ângelo constrangido em dar o adeus pudesse ter feito tudo de caso pensado, se é que se pode morrer de caso pensado. Ou fosse minha mãe, morta três  anos antes dele, que aproveitando minha ausência o levasse assim meio distraído, e ele sem se dar conta, tivesse ido, encantado por sua beleza.

Diante de meu pai morto, lembrei de Yolanda. Quando saí para o hospital ainda pude vê-la de relance através da janela. Estava em sua sala de musica, ouvia Schubert  quarteto de cordas. Costumávamos ouvir juntas depois da escola. Nos inspirava nas tarefas. Achei melhor não incomodá-la. Falei com Seu Alejandro, que por coincidência chegava naquele instante. O amigo de meu pai e pai de Yolanda não se conformava. Não se despediu, baixou a cabeça foi ter com a filha, vi quando lhe dava a notícia, gesticulando, levando as mãos à cabeça como que tentando arrancar de si toda aquela dor, pela raiz dos cabelos. Não esperei a reação de Yolanda, acelerei o passo. Não a considerava mais minha amiga desde que marcara casamento com Otávio.

Já no necrotério, me chamaram no guichê. Falava pelo buraco no vidro, a mulher negra de cabelo desgrenhado, impaciente, jeito de infelicidade. A voz sussurrada não desgrudava os olhos daquele papel como não soubesse de cor cada frase ali escrita. Fosse constrangimento de trabalhar com mortos ou sempre pesarosa por cada família que chorava ali, a mulher me fazia colar o ouvido no vácuo , na expectativa de decifrar seus murmúrios amargados por um hálito de embrulhar o estômago. Tinha que reconhecer o morto. E repetiu, dessa vez  com uma clareza na voz que poucas vezes ouvi. Tinha que reconhecer o morto.

Era o amargor de seu hálito que me tomou o corpo todo a ponto de amolecer braços e pernas. E a voz empostada e segura que dizia, “Vá e reconheça seu morto! Pegue os pertences dele que estão embaixo do lençol, volte e assine o papel” Com a naturalidade com que se para de respirar ou se vai a um bom restaurante, ou a uma apresentação de balé clássico. Era eu, dramática sofrida. Preterida, para atrás, perdida nas partituras de Schubert, sem entender as emendas e sem deixar que fluíssem. O silêncio entre as notas, a vida e a morte.

Meu pai era o quarto daquela fila de pés arroxeados. Pés que de nada mais serviam, além da mera identificação de quem os carregou a vida toda e imagino, hoje, o constrangimento da moça que ao meu lado entrou para o reconhecimento de seu morto e tomada pelo desespero, equivocou-se de pés, lágrimas que molhavam o cadáver de outro ou até mesmo de ninguém. E da forma desatinada que adentrou a sala, assim que percebeu seu engano, saiu mais corrida ainda. Quis rir, mas é que meus sentidos estavam sob o efeito do hálito da atendente. Quedei ali, ao lado de meu pai. Nosso derradeiro adeus. Nosso último silêncio juntos. Descobri seu rosto, e em seu semblante o descobri bem distante daquela couraça. E livre das amarras do corpo, provável que já estivesse noutro lugar. Sei que Henrique teria uma boa teoria para tudo aquilo se lá estivesse, mas é que ele fazia o caminho inverso de meu pai, neto aguardado com grande felicidade por Seu Alejandro.

E na rua caminhei um pouco, sem rumo que fosse, no rumo de casa, mas dessa vez apreciando as paisagens que sempre se perderam nos olhos tão viciados e programados pelo relógio. Vi pessoas que passavam por mim, através de mim. Procurei nos rostos reconhecer alguém, que acabado o enterro do ente querido, estivesse voltando para as corriqueirices, o anonimato, a casa vazia que se encheria de toda aquela angústia tão inconveniente. E depois de um banho relaxante, sentada à mesa, talvez escrevendo um texto tão bom ou melhor que os de Yolanda, até o último suspiro, o último ponto, o ponto final, com a naturalidade com que se enterra um pai.

Tive esperança que Yolanda ao dar-se conta da notícia tivesse trocado Schubert por Bach, ou quem sabe Albinoni, como forma de homenagem. Derradeira homenagem. Sabia de sua admiração por  Seu Ângelo. Causava-me ciúme seu interesse pelas experiências anarquistas de meu pai. Yolanda nunca seria a anarquista que fui. Ela nada tinha correndo em suas veias, além da frieza. Mas por meu pai talvez lamentasse.

A tortura do velório enfraquecera-me  a ponto  de desejar estar ali deitada ao lado dele. Recostada em seu ombro como quando pequena e então poderia ele contar-me algumas de suas histórias, me acalentar de leve os cabelos, e depois de adormecer, com a gentileza de suas mãos me pegaria nos braços, me deitaria na cama com a preocupação de cobrir-me para que nenhuma brisa mais fresca resfriasse meu corpo. E com um beijo na testa descansaria para todo sempre.

Vi quando Otávio e Yolanda saíram juntos. Ela, grávida de poucos meses, sentia-se mal, precisava de ar. Enquanto que eu, sufocada com o cheiro das flores que apodreciam a cada minuto não podia me afastar, porque era diante de meu pai morto que tinha a exata noção de minha existência e de minha pequeneza diante dela. Pouco importava o amor que sentia por aquele homem que se casaria em alguns dias com minha amiga mais querida.

Homem esse que pouco vi viver e não vi morrer, não enterrei nem sei se é mesmo morto. E a naturalidade que de nada me serviu, deixa a esperança latente, ou seja Schubert a me renovar o espírito. Estou certa de que neste exato momento Yolanda pensa em mim, por conta do diário, ou não. Mas que seja ela a me procurar! Ainda me resta boa parte do dia. Quero o vestido mais bonito, ser a mais bela. Hoje, Jonas vem para o jantar.


 

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