domingo, 3 de outubro de 2010

Relatos de uma anarquista - parte 2 (Era para ser Guimarães)

Renoir
Bato a porta atrás de mim. Nenhum som perturba os ares, a não ser pela falinha abafada do rádio a noticiar as últimas da noite. De mãos muito frias procuro abrigo à lareira que deixei acesa antes de sair. Nestas épocas geladas, assim que o último brilho pálido do sol deixa o horizonte, é preciso providenciar alguma outra fonte de calor antes que o ar gélido penetre pulmões e ossos.

O livro, deixei na mesinha junto à poltrona perto da lareira, na sala de estar. Será ele meu companheiro nesta madrugada que promete ser invernal.

Na cozinha, enquanto preparo uma xícara de chocolate fumegante, vejo pela frestinha de janela descortinada, a casa de Yolanda. A biblioteca escura de Yolanda. Lembro-me da recente aventura. Agora o frio me percorre a espinha, e já nem mais sei se pela lembrança ou pelo vento fino e congelante que entra pelo vão da porta.

Fujo de pensamentos. Me deixo recostar à poltrona, como se nela encontrasse todo amparo e aconchego que preciso para iniciar minha leitura, antes ainda recolho minhas pernas que se debruçam sobre o braço acolchoado de veludo vermelho, já meio queimado pelo sol e pelo uso.

O chocolate que me inunda a boca, aquece meu corpo, instantâneo como a sensação de que preciso de algo mais forte para beber. Algo que aplaque de vez essa aflição. É Yolanda que habita minha cabeça. A possibilidade de que descubra meu delito. Que dê pelo falta do livro.

É ele que agora acaricio. Com as mesmas mãos que em seu encalço, desvendaram a escuridão da biblioteca. Minha biblioteca! Que por alguma obra desatinada do destino me foi tomada e entregue a Yolanda nesta vida.

Abro a primeira página. Não o reconheço. A segunda, a terceira. Enlouquecida corro todo o livro mais de uma vez, centenas delas. Mas cadê Guimarães? Só encontro palavras imperfeitas, frases imprecisas de Yolanda. O desespero que me toma é por todo o trabalho que tive para entrar sorrateira em sua casa. E ter nas mãos, apenas o diário de Yolanda. Era para ser Guimarães, era para ser Guimarães!

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