sábado, 25 de outubro de 2014

Morte Iminente



Paul Cezanne


O que me mata, não são seus olhos insinceros, sua verdade leviana e insegura, os mecanismos torpes do seu pensar.

O que me mata, não são suas intenções duvidosas, seu humor quase premeditado, seu jeito de olhar ignorando tudo.

O que me mata, não é a falta de expectativa, suas palavras não ditas, seu fogo gelado, seu peito vazio, seus infortúnios.

O que me mata, é compreender tudo isso. E de compreender, duvidar de mim mesma. E de compreender, reconhecer-me no espelho e não conhecer-me mais.

O que me mata, é a culpa que de tua fica minha. O disparate de pensar que poderia te ter em sua melhor versão e de te ter, me ter. Quem sabe resgatar para o meu corpo pedaços de alma, que displicente fui perdendo por aí...

É tudo isso que me mata.

sábado, 27 de setembro de 2014

Adormecidos


 
Jonh Melhuish

 E quando o dia, cansado de ser sol, despertar noite num quase sorriso da lua, é quando irei em seu encalço.
Ainda que tudo conspire contra e às fadas do conto isto inspire afronta, eu assim abandonada à própria sorte, irei em seu encalço.
Sei que é lá no alto da colina, na torre solitária do castelo que já ruiu, que nunca existiu, é onde você está. Murada que te mantém. Você vilão, você refém, que descansa embalado pela cantiga. Quem dera fosse um ninar... E dormindo pudéssemos acordar... Mas amaldiçoados que fomos!
Calado, joelhos ao chão, pesadas são as cordas que escalpelam a alma, já sem pele, é carne viva que te expõe os segredos mais indizíveis. Não pode amar. É por causa da dor. Não pode ser amado.
E eu, sem muito compreender meus passos, propósitos indemarcados no pensamento, assim como as pegadas que diluem-se no caminho lamacento, mal me sustento... Sentimento que não quer sentir e sente, passo que não quer seguir e segue.
Chamo seu nome e tudo passa a ser por causa do seu nome. Apenas vou em seu encalço sem importar que seja noite e a lua não mais queira me guiar, as fadas se recusem a este conto e só façam me amaldiçoar, ainda assim, ainda exausta, eu persistirei.
Escalarei as paredes escorregadias e petrificadas que te cercam o peito, chegarei ao seu rosto amortecido, ausente, e contemplarei seus lábios com tanta doçura, amor sublime que buscarei além deste mundo e devotarei todo ele num beijo.
E quem sabe seu beijo me desperte deste sono de cem anos me liberte, me salve de mim mesma.
E possa eu finalmente acreditar em contos de fadas, em príncipes, no amor eterno.

domingo, 6 de abril de 2014

Sobre a morte de Clarisse

Hovsep Pushman

Clarisse me oprimia. Jeito de menear a cabeça me dando de ombros, queixo em riste. Olhos atentos que me ignoravam na intenção de me ignorar.
 
Clarisse me irritava, jeitinho de fragilidade, cheia de mãos gesticuladas à exaustão, caras e bocas que não revelavam palavras, apenas sombras de malícias num francês sustentado a muletas.

Clarisse me entristecia. Mania de atropelar sentimentos, palavras, idades, meu cachorro. Eu nunca a perdoei por isso.

Clarisse me dizia, se fazia, se gabava. Boa moça, boa família, boa conta bancária. Boa vadia, eu completava em pensamento.

Clarisse me descrevia. Gostava de escrever. Dizia ter o dom das entrelinhas, nascido com ele. Piada! Enquanto no papel difamava a mim mesma,  a ela mesma, a nós. Identidade insuportável. Coincidência de reflexos, apenas isto. Um espelho. Mas a farsante sempre foi ela.

Clarisse morria aos 27, porque assim era mais justo, e tinha Bach como trilha sonora. Empréstimo meu. Foi a mãe dela que pediu. Era seu último desejo. Meu maior desejo. Jesus Alegria dos Homens, e minha também. Justifiquei minha ausência: ”É que velórios me causam mal estar, uma espécie de pânico”. Simulei uma lágrima, a abracei convicta, “Meus pêsames”.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Confissão




Salvador Dali

E por falar no silêncio. E por falar na coragem. Tudo me falta, tudo me sobra, tudo me mata. E vivo morta. Meio viva, meio sem vida própria, cambaleando nos pensamentos sufocados pelo excesso de ar e de palavras. Vastidão de caminho a que chamam vida. Deserto onde se desenham veredas, vielas, mazelas, amores, florestas, para finalmente acabar deserto. Cada passo. Cada olhar. É preciso coragem. E se o que de mim querem é coragem, pois fico com o silêncio. E se me dizem que os pés funcionam a serviço do tempo, pois faço o contrário. E o pensar me arrasta distante como um louco desvairado, ignorando qualquer sentido horário, enquanto que o pés planto em profundas e antigas raízes, agarradas sempre no mesmo lugar. Teimosia danada. 
E mais uma vez o silêncio. Uma fuga. Um encontro derradeiro com a alma. Mas se é dela que fujo, é com ela que me deparo a todo minuto. Esperança de que as coisas tenham modificado tantinho que seja, um quase nada diferente. É tudo por conta do tal sentido de viver. Um, para fazer renascer da morte plena para vida sublimada.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Perplexidade



E se agora tudo fosse dito. E se agora o inaudito. Mas o tempo não há de deixar. Mas o vento não há de brisar. E quando o absurdo deixar-se adentrar. E quando o escuro voltar a iluminar, eu estarei aqui. Ainda serei eu na busca da completude. Compreendendo a insanidade cotidiana da sanidade, acertando as vírgulas nas frases desconexas, querendo palavras que definam o que não se vê, não se toca, e que me tange em pensamento obsessivo. O sentimento pungente, visceral tão presente tão vivo tão ausente que me deixa as mãos vazias, o coração murcho, batendo doído e a cabeça pulsando em taquicardia. Tão perto e impossível quanto a distância do que me pertence. E se o céu clarear. E se o sol insistir. Mas o tempo não há de deixar. Porque o tempo não há de porvir. Eu ainda estarei aqui. Imóvel no mesmo lugar. Incapaz do passo, decadente do traço. Deixar para trás. Fenecer.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Dez Minutos





              - Passa a maleta! Rápido!
  Aço homicida que me intimidava pelas costas. Apenas voz. Tenso, trêmulo, agressivo.
            Na maleta eu carregava o tesouro de minha filha. Era para ser o seu presente de aniversário, nada mais. Sarinha completava sete no mesmo sete do mês sete. Sexta-feira. Dia perfeito para festinhas de aniversário.
            Enquanto resolvia um problema de talões de cheques extraviados, o gerente me fazia aguardar dez minutos. O que coincidia com a chegada do ônibus no terminal, vindo do subúrbio sul para fazer a conexão com o trem sempre dez minutos atrasado, e depois dirigir-se ao subúrbio oposto. No ônibus vinha junto o homem mal-intencionado que saltaria no centro à procura de vitimas, nos dez minutos que o separavam da partida do trem.
           E deparava-se comigo, com uma maleta na mão, saindo do banco dez minutos atrasado pelo atraso do gerente. Desatento para a presença do homem mal-intencionado, preocupado com a fila na saída do estacionamento dez minutos mais longa, e por causa disto, a onda verde de semáforos que perderia, e por causa disto, a troca do turno na portaria do meu prédio. O Zé era novo no posto, demoraria pelo menos dez minutos a acertar o botão de acionamento da garagem. E então, o elevador estaria mais cheio, minha filha em lágrimas com minha demora.
          E se agora me negasse entregá-la, aquela voz se enfureceria e é bem provável que atirasse, se aquilo que me coagia fosse mesmo um revólver. Eu, contando com a inabilidade do atirador, talvez apenas  fraturasse algumas costelas, mas teria nos órgão vitais um menor impacto do projétil, o que me daria alguma chance. Ainda teria forças suficientes para me agarrar a maleta e não cedê-la ao bandido, que fugiria após o disparo infiltrando-se na multidão de pessoas da lanchonete da esquina que assustadas com o estampido deixariam nos pratos seus triângulos de pizza inacabados, para se juntarem aos ambulantes que apressados fechariam suas barracas, que se juntariam às sacoleiras em final de compras, e se aglomerariam muito rápido, todos, ao meu redor como numa apresentação mambembe no centro da cidade. Com sorte chamariam a ambulância que chegaria a tempo.
        Tempo esse que eu haveria perdido. Minha filha aflita teria já apagado as velinhas, pelo adiantado da hora. Seus amiguinhos ficariam perplexos: aniversariante sem presente?! Sem pai presente?! Minha mulher diante da situação, distrairia as crianças com um filme no DVD ao mesmo tempo que me chamaria no celular. E eu, estirado na maca da ambulância a caminho do hospital, quase desacordado mas ainda preocupado com o destino da maleta retirada da minha mão pelos paramédicos, ouviria som tão familiar e reconfortante ainda que não pudesse atendê-lo, som de fundo, difuso distante, que se confundiria à sirene enlouquecida da viatura. E somente muitas horas mais tarde, depois de um quadro clínico estabilizado é que minha mulher e filha entenderiam meu atraso.
          - A maleta! Passa a maleta!
          - Leve meu relógio, meu celular, mas a maleta não.
          - Cala boca, tiozinho! Não faz besteira, não olha para trás e passa logo a maleta!
          - Na maleta não tem nada de valor além de papéis e um presente para minha filha, olha...
         Maleta aberta. A coleção de estrelas do mar espalhava-se pela calçada. De súbito me faltou o ar. Abaixei para pegá-las notei que se sujavam. Vermelho gotejante. Era minha camisa manchada na altura do peito. Estocado pelas costas.
      A voz desaparecera como fosse apenas uma rabanada de vento, prenúncio de tempestade. Diferente do eu que imaginara, ninguém percebeu o ataque. Não houve disparo, apenas o golpe surdo da lâmina. E os triângulos de pizza restavam inacabados nos pratos, mas pela pontualidade do trem em seu atraso, as sacoleiras satisfeitas com suas aquisições a preços escandalosos de baratos já tinham embarcado nos ônibus fretados, dez minutos antes do acontecido. Os ambulantes que apressados fecharam suas barracas, apenas porque fugiam da policia. Não haveria aglomeração.
Recolhi as estrelas agora sujas com o meu sangue. Abraçado à maleta caminhei sem pressa. O ar evaporava-me do peito mais rápido do que eu pudesse respirá-lo. Sentei no banco de uma praça qualquer do centro da cidade. Apalermado, percebi que o fulano afanara-me  relógio e celular.
       Me dei conta da solidão do meu corpo, dos pensamentos silenciados, da vida no lapso. A Terra saía de sua órbita. Pendia no vácuo, suspensa.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Entre a expectativa e a solidão

Edvard Munch


Foi o tempo que passou. Pontual. Passou pela menina como fosse um trem sem estação. Assim apressado, de ruído frenético. Ela o viu de relance, ventania que lhe desarrumou o íntimo, provocando sensações. Desafiada, a menina bem tentou persegui-lo, pela estrada que corria junto dele. Faltou-lhe fôlego, ou fosse a mala que pesada demais não lhe permitira tal encalço. Ficou, então, para trás. Chorosa da impiedade do tempo, da incapacidade do corpo, tentada a retornar. Prosseguiu. E foi nas insignificâncias deixadas no rastro do vento, que ela descobriu beleza peculiar. O que antes lhe parecia um deserto, de paisagens monótonas, agora a deslumbrava. Expectativa. Que ressurgia entre a esperança e a ilusão. Primeiro a rosa, que desgarrada do tempo viera lhe enfeitar os cabelos. Depois o mar. Logo ali, na derradeira beirada da terra. Oceano de um tom escuro, que somente revelava seu esmeralda na presença do sol, aguardava por ela em silêncio. Silêncio que somente na ausência do tempo, a menina poderia reconhecer. Silêncio da solidão... É que mais uma vez, depois de tantas batalhas, ela sentiu medo; de que talvez aquelas águas perenes pudessem ser tomadas pela inquietude de ondas gigantescas e assim a levassem para o fundo. Profundo escuro e quieto, onde o tempo não seria bem-vindo, onde, enfim, a menina poderia recompor-se por dentro. Mas ela, hesitante, preferiu não avançar, também não quis recuar. Restar assim, por um momento, à distância segura, entre a expextativa e a solidão.