- Passa a maleta! Rápido!
Aço homicida que me intimidava pelas costas.
Apenas voz. Tenso, trêmulo, agressivo.
Na maleta eu carregava o
tesouro de minha filha. Era para ser o seu presente de aniversário, nada mais.
Sarinha completava sete no mesmo sete do mês sete. Sexta-feira. Dia perfeito
para festinhas de aniversário.
Enquanto resolvia um
problema de talões de cheques extraviados, o gerente me fazia aguardar dez
minutos. O que coincidia com a chegada do ônibus no terminal, vindo do subúrbio
sul para fazer a conexão com o trem sempre dez minutos atrasado, e depois dirigir-se
ao subúrbio oposto. No ônibus vinha junto o homem mal-intencionado que saltaria
no centro à procura de vitimas, nos dez minutos que o separavam da partida do
trem.
E deparava-se comigo, com
uma maleta na mão, saindo do banco dez minutos atrasado pelo atraso do gerente.
Desatento para a presença do homem mal-intencionado, preocupado com a fila na
saída do estacionamento dez minutos mais longa, e por causa disto, a onda verde
de semáforos que perderia, e por causa disto, a troca do turno na portaria do
meu prédio. O Zé era novo no posto, demoraria pelo menos dez minutos a acertar
o botão de acionamento da garagem. E então, o elevador estaria mais cheio, minha
filha em lágrimas com minha demora.
E se agora me negasse
entregá-la, aquela voz se enfureceria e é bem provável que atirasse, se aquilo
que me coagia fosse mesmo um revólver. Eu, contando com a inabilidade do atirador, talvez apenas fraturasse
algumas costelas, mas teria nos órgão vitais um menor impacto do projétil, o
que me daria alguma chance. Ainda teria forças suficientes para me agarrar a
maleta e não cedê-la ao bandido, que fugiria após o disparo infiltrando-se na
multidão de pessoas da lanchonete da esquina que assustadas com o estampido deixariam
nos pratos seus triângulos de pizza inacabados, para se juntarem aos ambulantes
que apressados fechariam suas barracas, que se juntariam às sacoleiras em final
de compras, e se aglomerariam muito rápido, todos, ao meu redor como numa
apresentação mambembe no centro da cidade. Com sorte chamariam a ambulância que
chegaria a tempo.
Tempo esse que eu haveria
perdido. Minha filha aflita teria já apagado as velinhas, pelo adiantado da
hora. Seus amiguinhos ficariam perplexos: aniversariante sem presente?! Sem pai
presente?! Minha mulher diante da situação, distrairia as crianças com um filme
no DVD ao mesmo tempo que me chamaria no celular. E eu, estirado na maca da
ambulância a caminho do hospital, quase desacordado mas ainda preocupado com o
destino da maleta retirada da minha mão pelos paramédicos, ouviria som tão
familiar e reconfortante ainda que não pudesse atendê-lo, som de fundo, difuso
distante, que se confundiria à sirene enlouquecida da viatura. E somente muitas
horas mais tarde, depois de um quadro clínico estabilizado é que minha mulher e
filha entenderiam meu atraso.
- A maleta! Passa a
maleta!
- Leve meu relógio, meu
celular, mas a maleta não.
- Cala boca, tiozinho! Não
faz besteira, não olha para trás e passa logo a maleta!
- Na maleta não tem nada
de valor além de papéis e um presente para minha filha, olha...
Maleta aberta. A coleção
de estrelas do mar espalhava-se pela calçada. De súbito me faltou o ar. Abaixei
para pegá-las notei que se sujavam. Vermelho gotejante. Era minha camisa
manchada na altura do peito. Estocado pelas costas.
A voz desaparecera como
fosse apenas uma rabanada de vento, prenúncio de tempestade. Diferente do eu
que imaginara, ninguém percebeu o ataque. Não houve disparo, apenas o golpe
surdo da lâmina. E os triângulos de pizza restavam inacabados nos pratos, mas
pela pontualidade do trem em seu atraso, as sacoleiras satisfeitas com suas
aquisições a preços escandalosos de baratos já tinham embarcado nos ônibus
fretados, dez minutos antes do acontecido. Os ambulantes que apressados
fecharam suas barracas, apenas porque fugiam da policia. Não haveria
aglomeração.
Recolhi as estrelas agora
sujas com o meu sangue. Abraçado à maleta caminhei sem pressa. O ar
evaporava-me do peito mais rápido do que eu pudesse respirá-lo. Sentei no banco
de uma praça qualquer do centro da cidade. Apalermado, percebi que o fulano
afanara-me relógio e celular.
Me dei conta da solidão do
meu corpo, dos pensamentos silenciados, da vida no lapso. A Terra saía de sua
órbita. Pendia no vácuo, suspensa.
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