quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Dez Minutos





              - Passa a maleta! Rápido!
  Aço homicida que me intimidava pelas costas. Apenas voz. Tenso, trêmulo, agressivo.
            Na maleta eu carregava o tesouro de minha filha. Era para ser o seu presente de aniversário, nada mais. Sarinha completava sete no mesmo sete do mês sete. Sexta-feira. Dia perfeito para festinhas de aniversário.
            Enquanto resolvia um problema de talões de cheques extraviados, o gerente me fazia aguardar dez minutos. O que coincidia com a chegada do ônibus no terminal, vindo do subúrbio sul para fazer a conexão com o trem sempre dez minutos atrasado, e depois dirigir-se ao subúrbio oposto. No ônibus vinha junto o homem mal-intencionado que saltaria no centro à procura de vitimas, nos dez minutos que o separavam da partida do trem.
           E deparava-se comigo, com uma maleta na mão, saindo do banco dez minutos atrasado pelo atraso do gerente. Desatento para a presença do homem mal-intencionado, preocupado com a fila na saída do estacionamento dez minutos mais longa, e por causa disto, a onda verde de semáforos que perderia, e por causa disto, a troca do turno na portaria do meu prédio. O Zé era novo no posto, demoraria pelo menos dez minutos a acertar o botão de acionamento da garagem. E então, o elevador estaria mais cheio, minha filha em lágrimas com minha demora.
          E se agora me negasse entregá-la, aquela voz se enfureceria e é bem provável que atirasse, se aquilo que me coagia fosse mesmo um revólver. Eu, contando com a inabilidade do atirador, talvez apenas  fraturasse algumas costelas, mas teria nos órgão vitais um menor impacto do projétil, o que me daria alguma chance. Ainda teria forças suficientes para me agarrar a maleta e não cedê-la ao bandido, que fugiria após o disparo infiltrando-se na multidão de pessoas da lanchonete da esquina que assustadas com o estampido deixariam nos pratos seus triângulos de pizza inacabados, para se juntarem aos ambulantes que apressados fechariam suas barracas, que se juntariam às sacoleiras em final de compras, e se aglomerariam muito rápido, todos, ao meu redor como numa apresentação mambembe no centro da cidade. Com sorte chamariam a ambulância que chegaria a tempo.
        Tempo esse que eu haveria perdido. Minha filha aflita teria já apagado as velinhas, pelo adiantado da hora. Seus amiguinhos ficariam perplexos: aniversariante sem presente?! Sem pai presente?! Minha mulher diante da situação, distrairia as crianças com um filme no DVD ao mesmo tempo que me chamaria no celular. E eu, estirado na maca da ambulância a caminho do hospital, quase desacordado mas ainda preocupado com o destino da maleta retirada da minha mão pelos paramédicos, ouviria som tão familiar e reconfortante ainda que não pudesse atendê-lo, som de fundo, difuso distante, que se confundiria à sirene enlouquecida da viatura. E somente muitas horas mais tarde, depois de um quadro clínico estabilizado é que minha mulher e filha entenderiam meu atraso.
          - A maleta! Passa a maleta!
          - Leve meu relógio, meu celular, mas a maleta não.
          - Cala boca, tiozinho! Não faz besteira, não olha para trás e passa logo a maleta!
          - Na maleta não tem nada de valor além de papéis e um presente para minha filha, olha...
         Maleta aberta. A coleção de estrelas do mar espalhava-se pela calçada. De súbito me faltou o ar. Abaixei para pegá-las notei que se sujavam. Vermelho gotejante. Era minha camisa manchada na altura do peito. Estocado pelas costas.
      A voz desaparecera como fosse apenas uma rabanada de vento, prenúncio de tempestade. Diferente do eu que imaginara, ninguém percebeu o ataque. Não houve disparo, apenas o golpe surdo da lâmina. E os triângulos de pizza restavam inacabados nos pratos, mas pela pontualidade do trem em seu atraso, as sacoleiras satisfeitas com suas aquisições a preços escandalosos de baratos já tinham embarcado nos ônibus fretados, dez minutos antes do acontecido. Os ambulantes que apressados fecharam suas barracas, apenas porque fugiam da policia. Não haveria aglomeração.
Recolhi as estrelas agora sujas com o meu sangue. Abraçado à maleta caminhei sem pressa. O ar evaporava-me do peito mais rápido do que eu pudesse respirá-lo. Sentei no banco de uma praça qualquer do centro da cidade. Apalermado, percebi que o fulano afanara-me  relógio e celular.
       Me dei conta da solidão do meu corpo, dos pensamentos silenciados, da vida no lapso. A Terra saía de sua órbita. Pendia no vácuo, suspensa.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Entre a expectativa e a solidão

Edvard Munch


Foi o tempo que passou. Pontual. Passou pela menina como fosse um trem sem estação. Assim apressado, de ruído frenético. Ela o viu de relance, ventania que lhe desarrumou o íntimo, provocando sensações. Desafiada, a menina bem tentou persegui-lo, pela estrada que corria junto dele. Faltou-lhe fôlego, ou fosse a mala que pesada demais não lhe permitira tal encalço. Ficou, então, para trás. Chorosa da impiedade do tempo, da incapacidade do corpo, tentada a retornar. Prosseguiu. E foi nas insignificâncias deixadas no rastro do vento, que ela descobriu beleza peculiar. O que antes lhe parecia um deserto, de paisagens monótonas, agora a deslumbrava. Expectativa. Que ressurgia entre a esperança e a ilusão. Primeiro a rosa, que desgarrada do tempo viera lhe enfeitar os cabelos. Depois o mar. Logo ali, na derradeira beirada da terra. Oceano de um tom escuro, que somente revelava seu esmeralda na presença do sol, aguardava por ela em silêncio. Silêncio que somente na ausência do tempo, a menina poderia reconhecer. Silêncio da solidão... É que mais uma vez, depois de tantas batalhas, ela sentiu medo; de que talvez aquelas águas perenes pudessem ser tomadas pela inquietude de ondas gigantescas e assim a levassem para o fundo. Profundo escuro e quieto, onde o tempo não seria bem-vindo, onde, enfim, a menina poderia recompor-se por dentro. Mas ela, hesitante, preferiu não avançar, também não quis recuar. Restar assim, por um momento, à distância segura, entre a expextativa e a solidão.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Sem saída


Dali



Diante da encruzilhada, a menina avistou um banquinho. Logo ali no entroncamento de muitos caminhos, aquele banquinho. Surrado do tempo, desistido, fosse apenas esquecido, fosse apenas um banquinho, de fragilidade ignorada.
A menina quis sentar-se, descansar a mala no chão, farta que estava das escolhas não feitas. De costas. Mirando o passado, ausentou-se por um momento, e distraída das coisas mais importantes, esqueceu dos motivos que a levavam ali. Carregava nos olhos a secura do presente, a respiração sufocada da paisagem que apequenava, desimportante. Ja desfeita dos sonhos impossíveis, estava decidida a também despojar-se das saudades, não fosse o cansaço.
Agora, abraçada à mala, quis seguir, quem sabe levada pelas mãos suaves do vento, fossem apenas os fantasmas de sempre, que a acompanhavam. Mas a menina enconbriu-se de não ver, porque não havia vento, marasmo que consumia todo o oxigênio, não haveria ninguém além dela, à deriva na terceira margem.
E assim a menina restou e restou e restou, só de passar o tempo. Até que, desarrependida, buscou mais uma vez a resposta, na mente, no corpo, nos sentidos. Mas é que por agora ainda não haveria saída, apenas a dúvida.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Caminhada

Dali



Desnudada de si mesma. A menina ia. Passos, que de tão leves não tocavam o chão. Assim distraída, a menina sorria. Sorriso nascido de um riso, que de tão solto a fazia tola. Dissidente de si mesma, a menina apenas escolhia outro caminho. Caminho que nada oferecia além de pequenos rompantes à alma. E na despretensão curiosa de saber, ela ia. Caminhava sem rumo. No rumo de casa. Fugida de si mesma. Assim a menina ia. Na estrada que não era feita das pedras amarelas, sem encantos nem fadas, apenas uma mala carregava na mão. Mala cheia do vazio que a acompanhava. Como fosse o medo da felicidade eterna, a clausura úmida das dores. Velhos conhecidos. A menina, da mala não poderia separar-se. Nunca. Um troféu, uma mácula. Passado que carregaria consigo até o fim. Um novo final. A mesma busca.
E quando o céu quis acinzentar, ela, gentil o reverenciou. Destemida de si mesma. Assim a menina ia. Deslumbramento que fazia do sépia, colorido, que de tão vivo ofuscava as vistas. Vai ver por isso, as lágrimas.

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Nona (9º)


Matisse


Foi de súbito. Susto quase premeditado. A menina estendeu os braços no ar. As mãos cerradas, então abriu.
Foi num gesto grandioso. Impulso quase libertador. Seja feliz! A menina dizia para si. No silêncio entre as notas de Beethoven. Seja feliz! Ela dizia. Fortíssimo.
Nas mãos vazias, a melodia. Constatação. Indemarcadas na paisagem, mãos soltas assim no ar, pareciam menores do que costume, talvez mais tolas.
Foi num suspiro. Coragem quase opressora. Os pés juntos plantados no chão. A menina queria ser grande, mas ali permaneceu, inexistida. A menina queria ser livre. Caminho do qual não poderia retornar.
Foi num momento de iluminação. Força quase complacente. A menina questionou, e mais de uma vez questionou. O mesmo semblante. A mesma busca. Outras notas.
Olhou ao seu redor para se dar conta do presente. Malas feitas. Resignação. A menina adormeceu. Finalmente adormeceu.

domingo, 5 de agosto de 2012

O nada

Claude Monet



À beira do penhasco, a menina admira o nada. A cabeça abandonada sobre os joelhos, levemente inclinada para cima. Pensamento ausente. E na possibilidade da queda, suas mãos estão úmidas. O peito abalado é inquietude da alma que não pode parar. A menina está farta, mas sabe que não pode parar. Voa alto. Além dos limites do horizonte. Distâncias inimagináveis. Angústia, velha conhecida, agora a acompanha. E inesperado o peso torna-se insuportável. Fardo. Mais uma vez na iminência da queda. Deixar-se cair, seria cair para sempre. Não haverá chão que a ampare em pedaços. Talvez por isso a menina reste ali, admirando o nada com o sol de fundo entre as montanhas, a lua mal apagada, a brisa quase cantiga. A mesma busca. O mesmo desejo. E quando o tempo se esgota, a menina apenas finge que está tudo bem. Ela diz para si, tudo bem.

domingo, 29 de julho de 2012

A morte e o renascimento


Picasso


A menina sabia. Sempre soube. A morte nada tinha de mórbida. Era apenas um instante. O instante do renascimento. Indolor, inodoro, necessário, revelador. Tantas vezes ela morrera durante a vida sem se dar conta. Renascia então diferente. Talvez melhor, talvez apenas diferente. E quando deparou-se com a própria imagem diante do espelho, quis cegar, quis fugir para então ficar, quis perguntar. Quis tanto. Contida, apenas admirou-se ali refletida. Olhos fixos nos olhos. Mergulho profundo, em busca de um sentido, de uma história, de sua essência. Olhos de menina, às vezes tão pequenina e desprotegida... Deles chegou a sentir compaixão, porque vagos ansiavam por outro olhar. Um outro que sobrepusesse àquele ali tão viciado. Outro que a embalasse em compreensão, desejou. Euforia passageira. Tudo não passara de imagem forjada pela mente, tão diferente da verdade, tão equivocada, como o medo da morte. Morte das dores antigas, dos erros do dia anterior, das palavras mal ditas, do anoitecer, do breu. Medo da vida. Porque a menina sabia, sempre soube que seu maior temor era da vida. Mistério que não ousaria desvendar e por isso compactuara com a morte todo o tempo. Todo este tempo, como o vento que soprara-lhe por entre os dedos das mãos. Menina displicente! Ralhava consigo mesma. Porque ela sempre soube correr sem sair do lugar, e exausta percebia que logo à sua frente estava tão distante, sempre distante. Abatimento. Então a mágica aconteceu. Sem explicação, sem razão alguma, apenas fosse esta a única saída. Como nas histórias de finais felizes, porque a menina sempre quis um final feliz que fosse somente seu. Quis tanto. Foi quando fechou os olhos, as mãos juntas oprimidas junto ao peito. Decidiu que a morte seria o último suspiro da noite, para que começasse a viver ao primeiro raio de luz. Era este o segredo que agora carregaria consigo sem contar à ninguém, nunca. Porque a menina sabia, sempre soube. Sorriso no olhar refletido, olhar diferente, agora estava finalmente diferente. Talvez livre. Talvez apenas diferente.