sexta-feira, 20 de junho de 2025

Um conto de ficção

 



Era uma vez…

Um povo amaldiçoado. Que nasceu para ser trincheira ou nasceu para matar. A liberdade para eles já não cabia em seu significado mais urgente. Uma gente que pouco se sabia feliz ou infeliz. Um deserto em tempestade de areia. 


As crianças nasciam velhas, os brinquedos eram quase sempre de guerra. Os homens, infantilizados, não cresciam. As mulheres choravam grande parte da vida. Lugar único, onde conflitos nasciam de fora para dentro. Tantas histórias contadas, tantas versões… E de repente mocinho e vilão se fundiam no mesmo ser, vítimas em profunda dor e fome, algozes destilando suas patologias.


Não havia respostas simples, soluções fáceis, liberdade possível, não as que se gostariam. Aprisionados no passado. As correntes arrastadas por milênios não podiam ser quebradas assim com uma filosofia vã, onde ideias absolutas desejassem se impor justificando a defesa de crenças absolutas. Era tirania em demasia. 


Determinado momento tudo foi se confundindo, e o que era só sobre a dor humana e seus espaços, desavenças de décadas, transformava-se agora, em armas de uma guerra psicológica, ideológica, como sempre, por poder. Um jogo de cartas marcadas. Um evento de reverberação mundial que arriscava consequência nefasta: e fazer emergir cenas pavorosas de perseguições que aconteceram lá atrás. Um capítulo que este mundo não deveria nunca mais querer revisitar. 


Enquanto isso…

Do outro lado do planeta, do ápice da montanha mais alta, descia o andarilho entre florestas e belas paisagens. Quase um dom Quixote não fosse ele um domador de sua própria consciência, em profunda sanidade, um homem invulgar e errante em busca de pisar novas terras, culturas e aventuras, assim, só de viver. 


Alcançada cidade grande, o homem percebeu-se caminhando em círculos, terras baixas mas de ar rarefeito, de um pesado respirar. Lavou o rosto na fonte de uma praça qualquer e percebeu que ventos bélicos o cegavam e confundiam. Agora de olhos despertos notou que por onde passava só via grandes multidões digladiando, puxavam de lá e de cá, palavras de ordem, violência verbal, às vezes física também. Farto da densidade que lhe oprimia o peito, decidiu colocar-se perigosamente no centro do cabo de guerra. 


Tentou mostrar que era preciso dissipar o ódio para poder novamente respirar, enxergar com clareza, então seguir novos e diferentes rumos. “É preciso ser a paz que se quer ver no mundo. A paz é também o silêncio que observa sem julgamentos, que aprende as duras lições ainda que às custas da ignorância de outrem. Mas produzir mais destruição é loucura, não percebem? Acordem!” Ele num misto de exaltação e desespero, foi massacrado. Entre chutes e socos restava ali, caído ao chão poeirento, sozinho. O equívoco era grande demais.


Um dia onde o sol brilhava quente e seco de produzir miragens no horizonte, e foi como numa aparição que ele sentiu algumas mãos que o ajudavam a se levantar. O grupo queria saber se estava bem. Foi aí que ele entendeu daquele mundo plural que tinha ouvido falar. Onde também havia sabedoria, amor, solidariedade, e pessoas que genuinamente torciam para que tudo ficasse bem, simplesmente guardando silêncios e vivendo suas melhores versões. 


Alguém então lhe disse: Fique tranquilo, qualquer momento é momento de renascer para o agora e despedir-se definitivamente do passado, abandonar o baralho de cartas para abraçar o mundo como fosse um abraço amoroso em nossas próprias mães. Esse é o caminho que leva até a paz e à liberdade. Um dia eles vão perceber.


Um tapinha amistoso nas costas, o grupo seguiu, o andarilho ainda ali, batia a poeira da roupa, juntava os cacarecos caídos da mochila, recolocava-a nas costas, se recompondo na alma, pensando naquilo que acabara de ouvir.






sábado, 7 de junho de 2025

Conversa com Deus

 


...e ele, sentado no banquinho empoeirado, na beira da estrada. Vendia bananas na carroça de boi improvisada de banca. No horizonte só se via azul e paisagem, borrada de uma névoa que perdurava mesmo no meio-dia. E foi de calor que ele tirou o chapéu de palha e começou a se abanar. Do nada, de uma brisa boba, foi que ouviu alguém dizer seu nome, e ele soube que era Deus, olhou pra cima e respondeu:

 

- É o senhor, Deus? Pois é com o senhor que eu falo e rezo... Não se apegue às minhas palavras meio assim sem feitura, mas o que falo é do meu mais sincero pensar...

 

Brisa boa veio de encontro, e bastou para satisfazer o rapaz de traços envelhecidos, e lhe dar a certeza de que Deus o ouvia:

 

- É que eu preciso entender do seu pretender, digo, o porquê desse povo todo vivendo no sofrimento da alma. Explico: é que pros lados de cá a guerra come solta, gente que era de bem, armada até os dentes, armada de uma fala preta pesada, feia mesmo... Gente que se engalfinha com gente... e de ódio em ódio vão se matando, na alma, no sentir, que era o mais puro, nem o laço, o do sangue, dado pelo senhor, é motivo de apaziguamento e compreensão. E sabe o que mais aflige o meu pensar? Depois de uma batalha, ninguém tá feliz, ninguém sabe da felicidade. E a gente, que fica só de vigiar os corações, vê assim: tudo apertado, de dor, de culpa ou do tal orgulho ferido...  Eu tenho pra mim que o inventor do orgulho é o capeta, coisa feita mesmo, e é pra atentar que depois ele sopra no nosso ouvido essa história de que o outro pode ser de mais importância que a gente, aí sabe como é, sobe feito foguete o arrepio que amolece a espinha e não tem mais pensar ou (des)pensar que segure o sangue que cega as vistas... Aliás é de não querer ver mais tanta tristeza que elas me têm falhado, será senhor Deus? E se for ele? O capeta? Dizem as más línguas que o capeta é o homem de voz forte e encantadora como as serpentes, é uma voz que seduz e de consumir o nosso sincero querer faz a gente querer outra coisa, a coisa que ele quer. Mas e o que ele quer? O senhor Deus pode perguntar: E eu amigo do senhor que sou, de sobreaviso lhe deixo: Ele quer o seu lugar! Dizem que ele é da feitiçaria: dessa que faz a gente repetir o sinal da cruz seguido, três vezes, que é pra dá proteção e tirar a imagem do pensamento. Ouvi que ele mente a verdade e (des)conta o conto tudo de novo se for do benefício dele.  E aí eu é que fico aqui só de perguntar: e o que será dessa terra de gente que no entardecer da vida quer mesmo é ter encontrado a felicidade... Explica pra mim senhor Deus?

 

Dessa vez não havia brisa, em vez disso parou um carro, o motorista queria saber das bananas, comprou meia dúzia, antes de arrancar disse:

 

- O tempo está mudando, acho que vem tempestade por aí, melhor se abrigar

 

O sertanejo olhou pro céu, achou melhor seguir o conselho do moço, porque o azul já acinzentava mais rápido que o normal, recolheu a mercadoria arrumando cada cacho com muito zelo que era pra não danificar as bananas ainda pensou no cheiro da torta de banana que a mãe faria para aproveitar o que não tinha sido vendido, sentou-se então na carroça, olhou mais uma vez pro céu e disse:

 

- É senhor Deus, desses mistérios que o senhor escondeu entre o céu e a terra, que eu quero ouvir e vou pia jurado: guardo seu segredo, vou ser aprendiz do bem viver, da sua poesia. E de lavar a terra a água despenca das nuvens mais escurecidas, mas amanhã o sol há de brilha lá na quina da montanha, aí fica tudo sequinho, o mato verde, o céu azul e quando a brisa bater vou saber que é o senhor.

 

E transformada a paisagem em noite ainda de dia, o rapaz na carroça de boi já quase desaparecia no encontro da terra com o horizonte.


quinta-feira, 5 de junho de 2025

Bodas de Cristal

 

Diante do espelho sou assaltada pela lembrança do meu décimo quinto aniversário de casamento. Tempo ausente. A não ser por alguns flashes um pouco difusos quase se misturando ao branco da parede refletida atrás de mim. De perto, rosto quase colado em meu reflexo, observo algumas rugas, pés de galinha. Lençóis meio gastos.

 

Os cabelos sedosos. Agora me caem melhor curtos. Faz tão pouco que eram lindos, longos. Moisés falou deles uma única vez, encantado, à surdina dos ecos... Nunca esqueci do Moisés, 6 anos mais jovem do que eu, irmão do Marcelo. O final de semana na praia? Quanto tempo faz? Puxo pela memória. Tinha 25 anos de idade, distantes de me perder de vista.

 

Estávamos noivos Marcelo e eu, com data marcada para agosto. Sempre gostei do mês de agosto. Frio mais ameno sem perder beleza de inverno. As mulheres vestidas com mais sofisticação, sedução implícita nos belos cortes das saias semi longas, os casacos que realçam o brilho e balanço dos cabelos soltos ou presos em coque dando ar de sensualidade casual. Marcamos agosto. Exigência minha. Marcelo veio com um papo de “mês do cachorro louco”, “crendice estúpida” falei. Era coisa da avó dele. Igreja Nossa Senhora do Brasil, 15 de agosto. Única cerimônia do dia, uma quarta feira que seria eternizada nas doze badaladas do sino no alto da torre, anunciando a confirmação daquele compromisso. Fiz questão.

 

A casa da praia pertencia aos pais de Marcelo e Moisés. E foi por insistência da mãe deles que fomos passar nosso último final de semana de “solteiros”.  Sem sentido, já que o ato mais que consumado num sexo quase que diário.  A idéia de me afastar da correria é que seria muito bem-vinda.

 

O Moisés apareceu por lá. Com uma conversa de “altas ondas” jeitinho surfista o dele de falar. Diante do espelho agora fica ridículo em mim, repetir” altas ondas”, ridículo. Percebo minhas bochechas que já não assentam mais no lugar correto, pendem. Tento com os dedos colocá-las de volta. Polegar e indicador numa operação fracassada já na concepção da coisa. Para cima, torno-me oriental, para baixo, triste. Desisto. A culpa é do espelho, preciso de um menos cruel.

 

E por falar em cruel, me surgiu de rompante a primeira e última noite na casa da praia. Eu e Marcelo quase prontos para dormir, a porta do quarto entreaberta. Era Moisés camuflado pela noite, o nosso observador. Eu sabia, ainda que não pudesse vê-lo com nitidez. Fiquei calada. Não fechei a porta. Não fui atrás de satisfações. Fiquei calada. Troquei de roupa sentindo-me talvez mais bonita. Fantasia boba, mas que naquele momento fazia todo o sentido.

 

 E de não encontrar maciez no travesseiro, restei insone. Água pareceu-me a decisão acertada. Na escuridão da cozinha alcancei o copo, a geladeira, a água. A brisa noturna soprava-me pelo vão da porta que dava para o quintal, com delicadeza tamanha que não pude resistir. Abri. E ali quedei sentada, recostada ao batente, saboreando tão revigorante líquido. Contemplei o céu trespassado por milhares de pequenas estrelas. Estrelas jamais imaginadas, que a poluição da metrópole me negligenciava toda noite.

 

E foi no reflexo delas que vi Moisés atrás de mim. Sabia que era ele. Porque Moisés, eu pressentia, ou apenas fosse o desejo de tê-lo por perto. Sentou-se ao meu lado. De início enredados pelas sensações e pensamentos disturbadores de nosso silêncio interior, ficamos. Fui eu quem falou primeiro:

- Estava sem sono, vim pegar água, aproveitei tomar um ar. E você? Sem sono?

- Eu ouvi um barulho, achei melhor investigar.

- Desculpe. Não quis te acordar.

- Não se preocupe. Eu ainda estava acordado, Melissa.

E os latidos na vizinhança irrompiam, senhores da escuridão, no silêncio que mais uma vez afinávamos.

 

Eu estava decidida a travar nova luta com o travesseiro, ensaiei partir, Moisés me segurou pelo braço. Pediu que ficasse mais um pouco. Foi quando falou da maciez do meu cabelo que esvoaçara inocente, atingindo seu rosto de raspão.

 

E ali restamos, trocando experiências e risos que reprimíamos às vezes levando a mão à boca. Dado momento foi a minha mão que calou a boca dele. Um ar de seriedade e constrangimento veio de companhia ao silêncio reincidente. Minha mão na sua boca, estática como em fotografia, congelada para posteridade. E tive a impressão do beijo na palma. Será?

 

Saída do transe, e sem o mesmo vigor, minha mão descaía vagarosa. Me desculpei. Ele sorriu. Descobri que seu sorriso nascia no canto dos olhos. Fiquei encantada. Marcelo não sorria assim.  E foi só para fazer Moisés rir que passei a dizer tudo que me viesse à mente, tolices apenas. E seus olhos se riam com tanta alegria, espontâneos, sem culpa, quase pueris....

 

O espelho agora diz que os meus também não sorriem como os de Moisés. Tudo bem. Não é tão ruim assim. Sempre gostei do desenho dos meus olhos, como compõem minha feição. Ainda que produzindo caretas, não perdem delineamento... O Moisés, naquela noite, disse dos meus olhos. Galanteio encoberto, palavras quase ditas para dentro, não lembro ao certo.

 

Só do ruborizar adolescente. Pegou minha mão, sabia ler as linhas. Cigana que o tinha ensinado nas praias da indonésia. As mãos dele estavam suadas de leve sem perder textura, um arrepio me corria a espinha enquanto ele acariciava minha palma a fim de desvendar o destino, ali naqueles pequenos entalhes, da vida, do dinheiro, do amor. Me disse:

- Vejo na linha do amor, que pode cometer enganos irremediáveis.

- Mas que tipo de engano?

- Enganos. Apenas enganos.

 

Invadida por um sentimento que não pude definir, puxei a mão para lugar mais seguro, entre minhas pernas. E Moisés foi atrás dela, roçando-me as coxas pelo ato involuntário do resgate. Não quis mais aquela brincadeira. Começou então a contar de suas aventuras nas diferentes praias que conhecera pelo mundo. Falava e brincava com a ponta de meus cabelos, ora trançando-os ora alisando-os. Meus olhos piscavam demorados na esperança de prolongar a sensação que aquele toque produzia em mim.

 

Uma brisa mais fresca fez com que Moisés e eu aconchegássemos juntinhos. Ele tomou a iniciativa, passou o braço em volta do meu pescoço. Eu sentia seu hálito de quando em quando, que intensificava à medida que a brisa aumentava. Ele falava. Eu entontecia. Seus lábios tocavam os meus, ou não? Pensamentos desconexos. O efeito molhado produzido na boca inundava-me o corpo todo...

 

Nua diante do espelho tento agora reproduzir aquele beijo que nunca aconteceu. Sinto nos lábios a gelidez não apenas deste vidro, mas de uma existência. A indiferença deste amante sincero à crueldade. Figura morta refletindo a nudez envelhecida. Mais uma vez acho-me ridícula. Morta e ridícula. Num close vejo as pequeninas marcas que já fazem morada na testa, no queixo.

 

Achei que me beijava no queixo quando as luzes da cozinha acenderam. Era Marcelo. Ali parado, agudo, a esfregar os olhos com as pupilas ainda dilatadas da escuridão como buscando acordar de um sonho insistente. Abraçada a Moisés não me movia, porque talvez o sonho fosse meu que de olhos abertos precisasse reabri-los para acordar. Moisés, levantou-se tranquilo, deu boa noite, foi para o quarto. Marcelo assumiu seu lugar à porta, perguntou-me se estava com frio. Abraçados fomos dormir.

 

Casei-me no dia 15 de agosto com todas as badaladas de minha exigência. Moisés não compareceu à cerimônia. Ausência justificada com uma viagem de surfe. Nunca mais o vi. Marcelo nunca tocou no assunto. Nunca me beijou de verdade. Não como Moisés. Não sei quem amei, quem desejei. Fosse esse o grande engano como prenunciara a linha de minha mão? Pouca diferença faz agora.

 

Marcelo vive às noitadas, talvez exorcizando suas frustrações em outros lábios, talvez seis anos mais jovens que os meus.

 


terça-feira, 11 de março de 2025

Das memórias que não são minhas, a história que ficou em silêncio



Do projeto que venho ainda escrevendo e reescrevendo sobre a vida da minha avó e do meu pai. Talvez essa história não tivesse qualquer importância, não fosse minha avó, Zélia Gattai, alguém de destaque na história do Brasil e do mundo: na literatura assim como no cenário político mundial, testemunha de tantos acontecimentos, protagonista de sua própria história, além disso, esposa de um dos maiores escritores do Brasil, meu avô amado a mim dado pelas circunstâncias, Jorge Amado. 

A partir daí, esse meu pedaço de história se tornaria interessante para alguns, pela simples razão de que o que eu queria contar não estava nos livros da minha memorialista. Um cantinho da história, tão lindo quanto intenso, contudo cheio de delicadezas, inundado de escolhas difíceis e mal compreendidas, e portanto, cheio de feridas mal cicatrizadas em suas paredes, palavras não ditas, e tantos temores a respeito da opinião pública e seus vereditos. 

Memórias que não são minhas, entretanto era eu uma das herdeiras dessas emoções nunca elaboradas, dos silêncios ecoados nessas paredes em carne viva, da rigidez, do total constrangimento e inabilidade com as próprias emoções, do negligenciamento e represamento total da sensibilidade artística, para deixar emergir por tanto tempo uma persona à prova de balas não obstante problemática, inflexível, insegura, exigente e vitimada. 

Se me perguntassem assim: Mas, por que falar disso? Pela poesia e pela cura. Felizmente a cura me alcançou antes de terminar essa história. A chance de me reinventar, por isso sigo na busca do melhor ângulo dessa paisagem. Um dia a terei pronta, não tenho pressa. Trata-se de um movimento tão pessoal ao mesmo tempo cheio de universalidades. Carrego em mim esse dom ou essa maldição de sentir dores que não são minhas, portanto, como um escultor, trabalho nessa história que é única, cada detalhe, devagar, zelado, cada nuance. Quero que seja a arte narrada mais delicada, intensa e universal, assim como eu a sinto. 

Sendo assim nunca poderia deixar essa história cair em mãos erradas. Confesso que o audiovisual me decepciona muito. A gente vê muita superficialidade, muita falta de ética e princípios morais, no final é sempre sobre o monotemático e o clichê, e o quanto se lucra e se engaja fazendo mais do mesmo. É a manutenção do poder e manipulação sobre as massas se utilizando do inconsciente coletivo. Para mim, não dá, pelo menos não para minha história.

Falar sobre a vida da minha avó? Ela mesma, lindamente, contou tudo. Histórias já produzidas por bons profissionais, artistas como Carla Laudari, Luciana Borghi… Falar sobre o meu olhar? Somente eu posso fazê-lo.

sábado, 30 de dezembro de 2023

Um causo real





Trata-se de uma história real que melhor ficaria se fosse um causo. Uma ficção para os mais incrédulos, e verdade verdadeira para aqueles que sabem da vastidão desse universo e que dele nada não entendemos além dessa nossa mente falastrona que cria e descria a mando do tal do ego.


Então me embrulho de uma fala que não é muito minha natureza, mas que se apresenta agora despudorada e sem razão de ser, para contar do desacontecido. Assim: estava eu, que sou pessoa mergulhada nos segredos do cosmo, em plena meditação, na solidão do meu quarto, quando se deu a comunicação que a princípio desconfiei ser um engodo da mente, mas que logo se revelou algo além do mundo carnal já que era dia e eu nem com sono estava. Era ele, o meu avô morto lá no início do século XXI, escritor conhecido mundialmente, reconhecido por suas personagens inesquecíveis e incansáveis de guerra entre cravos e canelas, e que agora se revelava esse ser espiritual poderosíssimo à minha frente, que fazia jus ao nome: de armadura, montado no cavalo e junto dele um exército de meninos capitães. Vinham eles no formato de flecha, sendo meu avô a ponta, se aproximavam de mim. Eles estavam ali logo à beira da cama, ou fosse eu que tivesse sido transportada para algum lugar, que sim que não, eu me mantinha firme na coragem da situação.


Pois é, eu que sempre admirei sua literatura, mas que nunca naveguei nas águas cheias de misticismos e orixás que eram seu oceano particular, estava diante da verdade por detrás daquela sua última existência terrena. Entendi a força que ele carregou a vida toda, a força que tinha cada romance seu, claro que ele tinha nascido para brilhar, e espalhar seu conhecimento, aquela Bahia de todos os santos que o mundo precisava conhecer e respeitar. A sensação de estar diante dele era intensa.


Ele me explicou tudo. Do imbróglio dos nossos antepassados, desse embrulha e desembrulha onde nossas famílias foram se entremeando, de um amarrio complicado, de correntes que a gente ainda arrasta nessa existência. E tudo se aclarava, era a impressão de que eu inclusive já sabia daquilo só não tinha me dado conta. Ele me disse que eu já tinha sido perdoada por seu povo antepassado, do qual ele era o protetor, mas é que de pronto não compreendi aquelas palavras, aí me veio à mente uns desacontecimentos recentes nos meus tratamentos holísticos. "Ah tá!", eu pensei na sequência. Aí foi que a coisa fez sentido mesmo, e eu senti o abraço e o carinho daquela meninada, quanto amor por eles! 


A gente não tem ideia de que a família dessa vida não é por acaso, se soubesse talvez perdesse menos tempo se digladiando. Mesmo assim eu pedi perdão, também pude perdoar a minha ignorância e a dos outros que talvez não tenham ideia de como tudo sucede nesse universo. Também perdoei os meninos capitães que me perseguiram durante tempos, me aporrinharam o sono, me brotaram os maiores terrores na escuridão da noite. Eles disseram que tudo foi missão dada, não foi coisa natural. Disseram dos encarnados, mandantes, que de mim contaram tantas patranhas e maledicências que só quando eles sentiram de perto o amor e a luz que me derramava do coração é que eles enxergaram, de quem era a mentira. Contaram que lá voltaram para tirar as devidas satisfações, mas eu pedi que não. Não fizessem isso por que afinal a ignorância é dádiva, e dádiva isenta culpa, não carma, mas culpa. 


Foi quando meu avô tocou no ponto nevrálgico dessa nossa existência, ele me explicou da justiça universal, falou que dela eu era merecedora, todos são, para o bem ou para o mal. Disse ainda que essa justiça é determinada pela necessidade do equilíbrio do universo, mais ou menos assim: o peso do dia que faz o contrapeso que segura a noite. Uma gangorra mesmo, que não pode pender nem para cá nem para lá. Mas como o homem é tomado pela ignorância que anuvia a mente, angustia o peito e cega as vistas, ele insiste que pode fazer justiça com as próprias mãos. Que pode saber do justo e do injusto. Nada disso. Pobre de nós que vivemos dos engodos que escolhemos viver.


Aí foi a vez de falar da minha literatura. Assim: livre. Pois é, ele disse que eu era livre, de palavras livres e que as usasse sem receio. Que contasse as histórias que eu quisesse contar, mesmo dele, mesmo da vó. Disse que a vó me amava, mas disso eu já sabia porque ela, eu já tinha encontrado tantas vezes. Que soubesse, que dele, eu não tivesse dúvida da estima e do respeito. "Só não estou mais tempo ao seu lado porque ela precisa de mim." Da dita pessoa eu não digo o nome, não. Ele me pediu para amá-la, que meu amor poderia ajudá-la ainda que ela não soubesse, ainda que ela rejeitasse. Eu já amava mesmo. Nunca deixei de fazê-lo, simplesmente era mais forte do que eu, do que meu orgulho. Eu a amava só de amor, só de admirar seu talento, seu carisma, mas é que ela andava e anda doente da alma, e meu avô disse que dela, ele cuidará sempre até o último suspiro.


Ele disse para ter paciência que tudo se resolve porque lá já está, que eu não questionasse mais a justiça universal e parasse de vez de controlar as palavras da minha literatura, porque sem liberdade não existe literatura. Aí foi a minha vez de pedir para que ele me protegesse com sua força de guerreiro e com a força de seus orixás. Ele disse que já fazia isso, mas o milagre estava no meu passo, e que portanto eu vivesse mais de viver e menos de me lamentar. Me garantiu que se passasse a vida ensaiando não seria na morte minha estreia. Só fiquei calada, de ouvir cada verdade esbofeteando-me o rosto, o centro da testa gelado como o quê, o topo da cabeça de arrepio em arrepio, até que tudo se dissolveu como fosse ali uma fantasmagoria, e eu agora entendida de toda realidade mas sem saber por onde começar.


Se sim se não, foi assim que a coisa se sucedeu, voltei a mim lavada pelas lágrimas, querendo contar com provas o que me tinha sucedido, mas a feita era incerta, improvável, É por isso que trago fatos desnarrados que é para não cismar compromisso com quer que seja. 


segunda-feira, 13 de dezembro de 2021

 

Erza Pearl


Uma coisa é certa. E triste. A dureza do chão me esvazia, me desampara. Na hostilidade, perco a mão, o rumo, já não sei criar. São esses ventos monotemáticos que bagunçam os meus cabelos, me impedem a visão. São essas músicas monocromáticas que apenas sacolejam e nada dizem, nada para mim. 

Nessa sensação alienígena sigo, estrangeira, em busca de iguais. E descubro que tudo tem um preço. Acontece que nos bolsos somente carrego esperança e boas palavras, moedas de troca, nunca as tive.

Sou crédula da arte que vem do universo e para ele retorna, em formatos diversos, todos encantadores. É que desse encanto que agora insiste, eu não canto, não acerto o passo, não vendo a alma. Por isso resto assim: penada 

Espero o momento de retornar, e poder pisar a dureza com os pés fincados nas nuvens que compõem a minha criação. Por isso, isso: acendo e apago como um vagalume, que sabe o que é ser um vagalume.



sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Exorcismo

 


Jaroslaw Jasnikowski


É desse jeito: Como tivessem me tirado algo de dentro, e colocado no lugar o que não identifico mais remexe, sinto. 

Um bicho, uma decepção, coisa assim: indescritível e insistente. Um vento quente mas que não esquenta. 

Um nada que toma espaço, rouba tempo, aporrinha. Aí leio poesia para poder dar nome ao bicho. "Vade retro Satana"!! 

Pratico meu latim, me pego de volta. Devolvo-me ao que era, agora melhorado, Corpo fechado. É vida que segue.