Diante do espelho sou assaltada pela lembrança do meu décimo quinto aniversário de casamento. Tempo ausente. A não ser por alguns flashes um pouco difusos quase se misturando ao branco da parede refletida atrás de mim. De perto, rosto quase colado em meu reflexo, observo algumas rugas, pés de galinha. Lençóis meio gastos.
Os cabelos sedosos. Agora me caem melhor curtos. Faz tão pouco que eram lindos, longos. Moisés falou deles uma única vez, encantado, à surdina dos ecos... Nunca esqueci do Moisés, 6 anos mais jovem do que eu, irmão do Marcelo. O final de semana na praia? Quanto tempo faz? Puxo pela memória. Tinha 25 anos de idade, distantes de me perder de vista.
Estávamos noivos Marcelo e eu, com data marcada para agosto. Sempre gostei do mês de agosto. Frio mais ameno sem perder beleza de inverno. As mulheres vestidas com mais sofisticação, sedução implícita nos belos cortes das saias semi longas, os casacos que realçam o brilho e balanço dos cabelos soltos ou presos em coque dando ar de sensualidade casual. Marcamos agosto. Exigência minha. Marcelo veio com um papo de “mês do cachorro louco”, “crendice estúpida” falei. Era coisa da avó dele. Igreja Nossa Senhora do Brasil, 15 de agosto. Única cerimônia do dia, uma quarta feira que seria eternizada nas doze badaladas do sino no alto da torre, anunciando a confirmação daquele compromisso. Fiz questão.
A casa da praia pertencia aos pais de Marcelo e Moisés. E foi por insistência da mãe deles que fomos passar nosso último final de semana de “solteiros”. Sem sentido, já que o ato mais que consumado num sexo quase que diário. A idéia de me afastar da correria é que seria muito bem-vinda.
O Moisés apareceu por lá. Com uma conversa de “altas ondas” jeitinho surfista o dele de falar. Diante do espelho agora fica ridículo em mim, repetir” altas ondas”, ridículo. Percebo minhas bochechas que já não assentam mais no lugar correto, pendem. Tento com os dedos colocá-las de volta. Polegar e indicador numa operação fracassada já na concepção da coisa. Para cima, torno-me oriental, para baixo, triste. Desisto. A culpa é do espelho, preciso de um menos cruel.
E por falar em cruel, me surgiu de rompante a primeira e última noite na casa da praia. Eu e Marcelo quase prontos para dormir, a porta do quarto entreaberta. Era Moisés camuflado pela noite, o nosso observador. Eu sabia, ainda que não pudesse vê-lo com nitidez. Fiquei calada. Não fechei a porta. Não fui atrás de satisfações. Fiquei calada. Troquei de roupa sentindo-me talvez mais bonita. Fantasia boba, mas que naquele momento fazia todo o sentido.
E de não encontrar maciez no travesseiro, restei insone. Água pareceu-me a decisão acertada. Na escuridão da cozinha alcancei o copo, a geladeira, a água. A brisa noturna soprava-me pelo vão da porta que dava para o quintal, com delicadeza tamanha que não pude resistir. Abri. E ali quedei sentada, recostada ao batente, saboreando tão revigorante líquido. Contemplei o céu trespassado por milhares de pequenas estrelas. Estrelas jamais imaginadas, que a poluição da metrópole me negligenciava toda noite.
E foi no reflexo delas que vi Moisés atrás de mim. Sabia que era ele. Porque Moisés, eu pressentia, ou apenas fosse o desejo de tê-lo por perto. Sentou-se ao meu lado. De início enredados pelas sensações e pensamentos disturbadores de nosso silêncio interior, ficamos. Fui eu quem falou primeiro:
- Estava sem sono, vim pegar água, aproveitei tomar um ar. E você? Sem sono?
- Eu ouvi um barulho, achei melhor investigar.
- Desculpe. Não quis te acordar.
- Não se preocupe. Eu ainda estava acordado, Melissa.
E os latidos na vizinhança irrompiam, senhores da escuridão, no silêncio que mais uma vez afinávamos.
Eu estava decidida a travar nova luta com o travesseiro, ensaiei partir, Moisés me segurou pelo braço. Pediu que ficasse mais um pouco. Foi quando falou da maciez do meu cabelo que esvoaçara inocente, atingindo seu rosto de raspão.
E ali restamos, trocando experiências e risos que reprimíamos às vezes levando a mão à boca. Dado momento foi a minha mão que calou a boca dele. Um ar de seriedade e constrangimento veio de companhia ao silêncio reincidente. Minha mão na sua boca, estática como em fotografia, congelada para posteridade. E tive a impressão do beijo na palma. Será?
Saída do transe, e sem o mesmo vigor, minha mão descaía vagarosa. Me desculpei. Ele sorriu. Descobri que seu sorriso nascia no canto dos olhos. Fiquei encantada. Marcelo não sorria assim. E foi só para fazer Moisés rir que passei a dizer tudo que me viesse à mente, tolices apenas. E seus olhos se riam com tanta alegria, espontâneos, sem culpa, quase pueris....
O espelho agora diz que os meus também não sorriem como os de Moisés. Tudo bem. Não é tão ruim assim. Sempre gostei do desenho dos meus olhos, como compõem minha feição. Ainda que produzindo caretas, não perdem delineamento... O Moisés, naquela noite, disse dos meus olhos. Galanteio encoberto, palavras quase ditas para dentro, não lembro ao certo.
Só do ruborizar adolescente. Pegou minha mão, sabia ler as linhas. Cigana que o tinha ensinado nas praias da indonésia. As mãos dele estavam suadas de leve sem perder textura, um arrepio me corria a espinha enquanto ele acariciava minha palma a fim de desvendar o destino, ali naqueles pequenos entalhes, da vida, do dinheiro, do amor. Me disse:
- Vejo na linha do amor, que pode cometer enganos irremediáveis.
- Mas que tipo de engano?
- Enganos. Apenas enganos.
Invadida por um sentimento que não pude definir, puxei a mão para lugar mais seguro, entre minhas pernas. E Moisés foi atrás dela, roçando-me as coxas pelo ato involuntário do resgate. Não quis mais aquela brincadeira. Começou então a contar de suas aventuras nas diferentes praias que conhecera pelo mundo. Falava e brincava com a ponta de meus cabelos, ora trançando-os ora alisando-os. Meus olhos piscavam demorados na esperança de prolongar a sensação que aquele toque produzia em mim.
Uma brisa mais fresca fez com que Moisés e eu aconchegássemos juntinhos. Ele tomou a iniciativa, passou o braço em volta do meu pescoço. Eu sentia seu hálito de quando em quando, que intensificava à medida que a brisa aumentava. Ele falava. Eu entontecia. Seus lábios tocavam os meus, ou não? Pensamentos desconexos. O efeito molhado produzido na boca inundava-me o corpo todo...
Nua diante do espelho tento agora reproduzir aquele beijo que nunca aconteceu. Sinto nos lábios a gelidez não apenas deste vidro, mas de uma existência. A indiferença deste amante sincero à crueldade. Figura morta refletindo a nudez envelhecida. Mais uma vez acho-me ridícula. Morta e ridícula. Num close vejo as pequeninas marcas que já fazem morada na testa, no queixo.
Achei que me beijava no queixo quando as luzes da cozinha acenderam. Era Marcelo. Ali parado, agudo, a esfregar os olhos com as pupilas ainda dilatadas da escuridão como buscando acordar de um sonho insistente. Abraçada a Moisés não me movia, porque talvez o sonho fosse meu que de olhos abertos precisasse reabri-los para acordar. Moisés, levantou-se tranquilo, deu boa noite, foi para o quarto. Marcelo assumiu seu lugar à porta, perguntou-me se estava com frio. Abraçados fomos dormir.
Casei-me no dia 15 de agosto com todas as badaladas de minha exigência. Moisés não compareceu à cerimônia. Ausência justificada com uma viagem de surfe. Nunca mais o vi. Marcelo nunca tocou no assunto. Nunca me beijou de verdade. Não como Moisés. Não sei quem amei, quem desejei. Fosse esse o grande engano como prenunciara a linha de minha mão? Pouca diferença faz agora.
Marcelo vive às noitadas, talvez exorcizando suas frustrações em outros lábios, talvez seis anos mais jovens que os meus.