quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Das incongruências

Michael Cheval 


Quando penso a paz mundial, me parece tão possível! Abdicar pelo outro, olhar nos olhos do outro e reconhecê-lo como ser humano, para unirem-se todos em prol de um mesmo ideal: a felicidade plena.


Já quando me perguntam sobre paz interior, aquela do espírito, eu logo me deixo num suspiro longo… Complexo demais, tão individual! É uma verdadeira batalha enredada: expulsar de dentro de você, o você, que não funciona.


quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Realidade Cinza chumbo

 



Se não me sobra tempo, se me falta inspiração, seja porque ultimamente tenho me ocupado demais da vida alheia. De uns que sei nome, de outros que sei rosto. Tudo muito aleatório. Outros que nem conheço. 


E tratar do que não é meu, tem me jogado de cara no chão de uma realidade endurecida e pessimista. É, o mundo anda pessimista. De uma maneira geral e também individual. As pessoas têm brigado demais. De uma discussão que não se quer ter fim. Quando parece que vai amainar, lá vem madeira para robustecer o fogo que já está fora de controle. 


Eu fico só de observar a fumaça que resulta desse diz que me diz, dessa medição de forças, inútil: vapores escurecidos que minam pelos poros, ouvidos, boca, olhos. As palavras mal tocam o ar e esfumaçam como fossem jogadas em ácido. A coisa vai num crescente até que tudo fica tomado dessa névoa espessa. Cinza chumbo. E quando todo mundo acha que foi o tempo que nublou. Não foi não. É só a massa densa formada pelo ódio excretado. E aí a gente descobre que o ódio tem cor, se toca. O ódio sufoca. Às vezes penso que essa falta de ar horrorosa possa ser o ódio que consome todo o oxigênio do ar e polui mais que monóxido de carbono. Será?


A verdade é, que vindo minha inspiração de lá, do céu, ou cá de dentro, preciso estar a salvo dessa poluição tóxica. Seria isso um egoísmo meu? Não bestializar-me? Simplesmente tapar boca, nariz e ouvidos? Normalmente a dor do outro também me dói, mas não sou santa, e algumas cegueiras me provocam, algumas insistências em temas recorrentes também me amofinam. E quando entro nessa ferocidade me dou conta de que estou ocupada demais da vida alheia. Se o outro me indispõe, é claro que, o que não era meu, peguei para mim. Não há interlocutor que possa ser responsável por minhas feras interiores. Faço escolhas.


Hoje o céu está azul claro, estou achando que o amor, ao menos hoje, deu a volta por cima!


sexta-feira, 6 de agosto de 2021

Meditações

 

                                        Russell Discombe -  'deep sky' objects some up to 50 million light-years away.



Mergulho no universo. Oceano eterno de estrelas. Deixo-me alar… Agora faço parte de tudo o que é. Simplesmente sou. 

Vivo dos silêncios que me preenchem, assisto o mundo, penso filosofias, jornadeio esperanças.

Estou livre do espaço e do tempo. Sou eletricidade e magnetismo, muito além da velocidade da luz. Sou colapso. Sou dia e sou noite. Sou sempre. A totalidade está aqui, me acaricia, me abraça. 

É quando me visto de infinito para falar com Deus. Mas Deus não existe. Deus é. Deus está. Deus sou. Deus uno. Apenas Deus.

E tomada por esse novo esplendor que estou, crio, sorrio. Dedilho notas de poesias, danço músicas em verso. De repente sou valsa. Transmuto escuridões, instantânea e incandescente, sou luz.

domingo, 1 de agosto de 2021

Sobre ser

 

Salvador Dali


É chegado o juízo final. De juiz passo a réu. Não sofro metamorfoses, é apenas o peso que recai sobre mim. Gravidades. Dos tempos do impensado. Quando eram erros alheios meus acertos. Quando amargores em outras bocas eram minhas vitórias. Quando guerra no peito do meu irmão era a minha paz. O mundo é injusto? Ou eu, que via minhas, as belas paisagens, ainda que estivesse cega. Via verdades, ainda que os olhos não fossem meus?

É tempo de aceitar e recolher deuses e demônios que vivem dentro de mim, em mim. Porque sou céu e sou inferno. Vivo no limiar. O véu que me divide entre real e ilusão, está logo ali, depois do juízo final, ultrapassada as reminiscências, além.

Se agora ganho olhos, se ganho asas, não é absolvição. Se escorro lágrimas e pesares, não é condenação.

É simplesmente a possibilidade de me sentir, de me seguir, para finalmente. Ser.


sexta-feira, 23 de julho de 2021

Lugar Ideal



Salvador Dali





Atravessei mares, cordilheiras e invernos, visitei abismos, castelos de areia, infernos. Para chegar exatamente neste lugar. O ponto de partida. 

Arrastei feridas, perplexidades e correntes que só me fizeram pesar a caminhada. Ah! ceguei vezes demais! Desatenta das coisas mais importantes… E foram-me dados sinais demais... Foram tropeços demais, amores errados demais, advérbios à exaustão. 

Aqui, neste lugar, não é céu mas pode perfeitamente ser azul. Pode perfeitamente ser poesia. Se antes o movimento era marcado no ritmo do relógio, agora transcende o tempo para descobrir o espaço infinito. Constante. 

Aqui, tudo e nada se completam. O amor transborda e inunda oceanos. Aqui a liberdade é diferente. É livre! Aqui, palavras e sentimentos são tangíveis, nós, não. Aqui, os ouvidos ouvem, a boca está em paz. Aqui, a solidão é feita de silêncios que acolhem. 

Aqui, é simplesmente o agora. Simplesmente agora.

quarta-feira, 21 de julho de 2021

O Romance

 

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Sinópse

Uma relação obsessiva. Um triângulo amoroso. O verdadeiro amor. O amor pela liberdade... A carta a ser entregue pessoalmente à Yolanda, marcará o tão aguardado e ao mesmo tempo temido embate entre as amigas. Nada mais poderá mudar o destino fadado de Antonella.

Segunda-feira de madrugada,1986, Antonella invade sorrateiramente a biblioteca de Yolanda em busca de um livro que deseja recuperar. As duas são vizinhas desde a infância e a proximidade das famílias obrigou-as à convivência, fazendo surgir um vínculo afetivo parecido ao de duas irmãs. Antonella, apenas dois anos mais nova do que Yolanda, ganhou Primeiras histórias, de Guimarães Rosa, no seu aniversário de 30 anos, em 1962, como presente de Otávio. Esse é o livro que marca definitivamente a relação doentia entre Antonella, Yolanda e Otávio... Mas tudo não passa de uma cilada, as capas trocadas dos livros, e o que Antonella tem nas mãos é apenas o diário infame de Yolanda, cheio de provocações e revelações.

Esse é o gatilho que dispara na mente ora exata ora confusa de Antonella, a sede de vingança, e conseguir de volta tudo que dela foi roubado por toda a vida, agora é questão de honra. Ela está doente e de repente a sensação da finitude a invade e ela mergulha em reminiscências. Somos levados então através dos cômodos da casa cheia de lembranças, e para o passado acronológico, tendo como pano de fundo a história política e social do Brasil e do mundo, que vai dos anos 30 até 1986. É nesse contexto que conheceremos a historia de imigrantes anarquistas italianos e espanhóis, fugidos do fascismo. Histórias de judeus fugidos do nazismo, e a luta de todos eles pela liberdade. Porém é Antonella a única refém: de seus fantasmas. Ela nos levará através de sua crescente insanidade a um jogo de verdades, versões e verdades inventadas rumo a um final que nos deixará nada menos do que perplexos.

domingo, 10 de novembro de 2019

Conversa com Deus




Michel Cheval - Surrealismo e o absurdo


...e ele, sentado no banquinho empoeirado, na beira da estrada. Vendia bananas na carroça de boi improvisada de banca. No horizonte só se via azul e paisagem, borrada de uma névoa que perdurava mesmo no meio dia. E foi de calor que ele tirou o chapéu de palha e começou a se abanar. Do nada, de uma brisa boba, foi que ouviu alguém dizer seu nome, e ele soube que era Deus, olhou pra cima e respondeu:

- É o senhor, Deus? Eu carrego cá comigo essa certeza de ser o senhor, disse outro dia uma moça de muita sabedoria que Deus passava justo por aqui de quando em quando. Pois saiba que é com o senhor que eu falo e rezo: não se apegue às minhas palavras sem feitura, mas o que digo é do meu mais sincero sentir...

Brisa boa veio de encontro e bastou para satisfazer o menino envelhecido por dentro, e lhe dar a certeza de que Deus o ouvia:

- É que eu preciso desse entendimento, o do seu pretender, digo, o porquê desse povo todo vivendo no sofrimento da alma. Explico: é que pras bandas de cá a guerra come solta, gente que era de bem, armada até os dentes, armada de uma fala preta pesada, feia mesmo... Gente que se engalfinha com gente... e de ódio em ódio vão se matando, na alma, no sentir, que era o mais puro, nem o laço, o do sangue dado pelo senhor, é motivo de apaziguamento e compreensão. E sabe o que mais aflige o meu pensar? Depois de uma batalha, ninguém tá feliz, ninguém sabe da felicidade. E a gente, que fica só de vigiar os corações, vê assim: tudo apertado, de dor, de culpa ou do tal orgulho ferido...  Eu tenho pra mim que o inventor do orgulho é o capeta, coisa feita mesmo, e é pra instigar que depois ele sopra no nosso ouvido essa história de que o outro possa ser de mais valor perante o Senhor, que a gente, aí sabe como é, sobe feito foguete o arrepio que amolece a espinha e não tem mais pensar ou (des)pensar que segure o sangue que cega as vistas... Aliás é de não querer ver mais tanta aflição que elas me têm falhado, será senhor Deus? E se for ele? O capeta? O moço das marionetes! Dizem as más línguas que o capeta é homem de voz forte, como fosse a melodia encantadora de serpentes, sabe contar boas histórias, tem jeito de sedução e de consumir o nosso sincero querer faz a gente querer outra coisa, a coisa que ele quer. Mas e o que ele quer? O senhor Deus pode perguntar. Respondo: eu amigo do senhor que sou, de sobreaviso lhe deixo, ele quer o seu lugar! Dizem que ele é da feitiçaria: dessa que faz a gente repetir o sinal da cruz seguido, três vezes, que é pra dá proteção e tirar a imagem do pensamento. Ouvi que ele mente a verdade e (des)conta o conto tudo de novo se for do benefício dele.  E aí eu é que fico aqui só de perguntar: e o que será dessa terra de gente que no entardecer da vida queria mesmo é ter encontrado a felicidade, como vai ser morrer sem ter vivido, ou ter vivido assim, displicente das coisas mais importantes? Explica pra mim senhor Deus?

Dessa vez não havia brisa, em vez disso parou um carro, o motorista queria saber das bananas, comprou meia dúzia, antes de arrancar disse:

-  Ô moleque, o tempo está mudando, acho que vem tempestade por aí, melhor se abrigar

O menino olhou pro céu, achou melhor seguir o conselho do moço, porque o azul já acinzentava mais rápido que o normal, recolheu a mercadoria arrumando cada cacho com muito zelo que era pra não danificar as bananas, ainda pensou no cheiro da torta que a mãe faria para aproveitar o que não tinha sido vendido, sentou-se então na carroça, olhou mais uma vez pro céu e disse:

- É senhor Deus, nossa prosa não é terminada não, desses mistérios que o senhor escondeu entre o céu e a terra,  eu quero ouvir e vou pia jurado: guardo seu segredo, vou ser aprendiz do bem viver, da sua poesia. Agora a água chega, de vento em vento, lava a terra , mas amanhã o sol há de brilhar lá na quina da montanha, aí fica tudo sequinho, o mato verde, o céu azul. Eu vou estar por aqui e quando a brisa bater vou saber que é o senhor.

E transformada a paisagem em noite, ainda de dia,  o menino na carroça de boi  seguia, tranquilo, já quase desaparecia no encontro da terra com o horizonte.