E se agora tudo fosse dito. E se agora o inaudito. Mas o tempo não há de deixar. Mas o vento não há de brisar. E quando o absurdo deixar-se adentrar. E quando o escuro voltar a iluminar, eu estarei aqui. Ainda serei eu na busca da completude. Compreendendo a insanidade cotidiana da sanidade, acertando as vírgulas nas frases desconexas, querendo palavras que definam o que não se vê, não se toca, e que me tange em pensamento obsessivo. O sentimento pungente, visceral tão presente tão vivo tão ausente que me deixa as mãos vazias, o coração murcho, batendo doído e a cabeça pulsando em taquicardia. Tão perto e impossível quanto a distância do que me pertence. E se o céu clarear. E se o sol insistir. Mas o tempo não há de deixar. Porque o tempo não há de porvir. Eu ainda estarei aqui. Imóvel no mesmo lugar. Incapaz do passo, decadente do traço. Deixar para trás. Fenecer.
"...Restávamos três anárquicos. De carne, ossos, olhos fixos no mesmo ideal. Foram-se dois. E de fugir da matemática me escondi entre palavras. Descobri então que números também são palavras. De volta à matemática, três menos dois. Números-palavras que de cruéis me fizeram restar um, no lapso."
segunda-feira, 23 de setembro de 2013
quarta-feira, 7 de agosto de 2013
Dez Minutos
- Passa a maleta! Rápido!
Aço homicida que me intimidava pelas costas.
Apenas voz. Tenso, trêmulo, agressivo.
Na maleta eu carregava o
tesouro de minha filha. Era para ser o seu presente de aniversário, nada mais.
Sarinha completava sete no mesmo sete do mês sete. Sexta-feira. Dia perfeito
para festinhas de aniversário.
Enquanto resolvia um
problema de talões de cheques extraviados, o gerente me fazia aguardar dez
minutos. O que coincidia com a chegada do ônibus no terminal, vindo do subúrbio
sul para fazer a conexão com o trem sempre dez minutos atrasado, e depois dirigir-se
ao subúrbio oposto. No ônibus vinha junto o homem mal-intencionado que saltaria
no centro à procura de vitimas, nos dez minutos que o separavam da partida do
trem.
E deparava-se comigo, com
uma maleta na mão, saindo do banco dez minutos atrasado pelo atraso do gerente.
Desatento para a presença do homem mal-intencionado, preocupado com a fila na
saída do estacionamento dez minutos mais longa, e por causa disto, a onda verde
de semáforos que perderia, e por causa disto, a troca do turno na portaria do
meu prédio. O Zé era novo no posto, demoraria pelo menos dez minutos a acertar
o botão de acionamento da garagem. E então, o elevador estaria mais cheio, minha
filha em lágrimas com minha demora.
E se agora me negasse
entregá-la, aquela voz se enfureceria e é bem provável que atirasse, se aquilo
que me coagia fosse mesmo um revólver. Eu, contando com a inabilidade do atirador, talvez apenas fraturasse
algumas costelas, mas teria nos órgão vitais um menor impacto do projétil, o
que me daria alguma chance. Ainda teria forças suficientes para me agarrar a
maleta e não cedê-la ao bandido, que fugiria após o disparo infiltrando-se na
multidão de pessoas da lanchonete da esquina que assustadas com o estampido deixariam
nos pratos seus triângulos de pizza inacabados, para se juntarem aos ambulantes
que apressados fechariam suas barracas, que se juntariam às sacoleiras em final
de compras, e se aglomerariam muito rápido, todos, ao meu redor como numa
apresentação mambembe no centro da cidade. Com sorte chamariam a ambulância que
chegaria a tempo.
Tempo esse que eu haveria
perdido. Minha filha aflita teria já apagado as velinhas, pelo adiantado da
hora. Seus amiguinhos ficariam perplexos: aniversariante sem presente?! Sem pai
presente?! Minha mulher diante da situação, distrairia as crianças com um filme
no DVD ao mesmo tempo que me chamaria no celular. E eu, estirado na maca da
ambulância a caminho do hospital, quase desacordado mas ainda preocupado com o
destino da maleta retirada da minha mão pelos paramédicos, ouviria som tão
familiar e reconfortante ainda que não pudesse atendê-lo, som de fundo, difuso
distante, que se confundiria à sirene enlouquecida da viatura. E somente muitas
horas mais tarde, depois de um quadro clínico estabilizado é que minha mulher e
filha entenderiam meu atraso.
- A maleta! Passa a
maleta!
- Leve meu relógio, meu
celular, mas a maleta não.
- Cala boca, tiozinho! Não
faz besteira, não olha para trás e passa logo a maleta!
- Na maleta não tem nada
de valor além de papéis e um presente para minha filha, olha...
Maleta aberta. A coleção
de estrelas do mar espalhava-se pela calçada. De súbito me faltou o ar. Abaixei
para pegá-las notei que se sujavam. Vermelho gotejante. Era minha camisa
manchada na altura do peito. Estocado pelas costas.
A voz desaparecera como
fosse apenas uma rabanada de vento, prenúncio de tempestade. Diferente do eu
que imaginara, ninguém percebeu o ataque. Não houve disparo, apenas o golpe
surdo da lâmina. E os triângulos de pizza restavam inacabados nos pratos, mas
pela pontualidade do trem em seu atraso, as sacoleiras satisfeitas com suas
aquisições a preços escandalosos de baratos já tinham embarcado nos ônibus
fretados, dez minutos antes do acontecido. Os ambulantes que apressados
fecharam suas barracas, apenas porque fugiam da policia. Não haveria
aglomeração.
Recolhi as estrelas agora
sujas com o meu sangue. Abraçado à maleta caminhei sem pressa. O ar
evaporava-me do peito mais rápido do que eu pudesse respirá-lo. Sentei no banco
de uma praça qualquer do centro da cidade. Apalermado, percebi que o fulano
afanara-me relógio e celular.
Me dei conta da solidão do
meu corpo, dos pensamentos silenciados, da vida no lapso. A Terra saía de sua
órbita. Pendia no vácuo, suspensa.
terça-feira, 23 de outubro de 2012
Entre a expectativa e a solidão
Edvard Munch |
Foi o tempo que passou. Pontual. Passou pela menina como fosse um trem sem estação. Assim apressado, de ruído frenético. Ela o viu de relance, ventania que lhe desarrumou o íntimo, provocando sensações. Desafiada, a menina bem tentou persegui-lo, pela estrada que corria junto dele. Faltou-lhe fôlego, ou fosse a mala que pesada demais não lhe permitira tal encalço. Ficou, então, para trás. Chorosa da impiedade do tempo, da incapacidade do corpo, tentada a retornar. Prosseguiu. E foi nas insignificâncias deixadas no rastro do vento, que ela descobriu beleza peculiar. O que antes lhe parecia um deserto, de paisagens monótonas, agora a deslumbrava. Expectativa. Que ressurgia entre a esperança e a ilusão. Primeiro a rosa, que desgarrada do tempo viera lhe enfeitar os cabelos. Depois o mar. Logo ali, na derradeira beirada da terra. Oceano de um tom escuro, que somente revelava seu esmeralda na presença do sol, aguardava por ela em silêncio. Silêncio que somente na ausência do tempo, a menina poderia reconhecer. Silêncio da solidão... É que mais uma vez, depois de tantas batalhas, ela sentiu medo; de que talvez aquelas águas perenes pudessem ser tomadas pela inquietude de ondas gigantescas e assim a levassem para o fundo. Profundo escuro e quieto, onde o tempo não seria bem-vindo, onde, enfim, a menina poderia recompor-se por dentro. Mas ela, hesitante, preferiu não avançar, também não quis recuar. Restar assim, por um momento, à distância segura, entre a expextativa e a solidão.
quarta-feira, 3 de outubro de 2012
Sem saída
Dali |
Diante da encruzilhada, a menina avistou um banquinho. Logo ali no entroncamento de muitos caminhos, aquele banquinho. Surrado do tempo, desistido, fosse apenas esquecido, fosse apenas um banquinho, de fragilidade ignorada.
A menina quis sentar-se, descansar a mala no chão, farta que estava das escolhas não feitas. De costas. Mirando o passado, ausentou-se por um momento, e distraída das coisas mais importantes, esqueceu dos motivos que a levavam ali. Carregava nos olhos a secura do presente, a respiração sufocada da paisagem que apequenava, desimportante. Ja desfeita dos sonhos impossíveis, estava decidida a também despojar-se das saudades, não fosse o cansaço.
Agora, abraçada à mala, quis seguir, quem sabe levada pelas mãos suaves do vento, fossem apenas os fantasmas de sempre, que a acompanhavam. Mas a menina enconbriu-se de não ver, porque não havia vento, marasmo que consumia todo o oxigênio, não haveria ninguém além dela, à deriva na terceira margem.
E assim a menina restou e restou e restou, só de passar o tempo. Até que, desarrependida, buscou mais uma vez a resposta, na mente, no corpo, nos sentidos. Mas é que por agora ainda não haveria saída, apenas a dúvida.
quarta-feira, 12 de setembro de 2012
Caminhada
Dali |
Desnudada de si mesma. A menina ia. Passos, que de tão leves não tocavam o chão. Assim distraída, a menina sorria. Sorriso nascido de um riso, que de tão solto a fazia tola. Dissidente de si mesma, a menina apenas escolhia outro caminho. Caminho que nada oferecia além de pequenos rompantes à alma. E na despretensão curiosa de saber, ela ia. Caminhava sem rumo. No rumo de casa. Fugida de si mesma. Assim a menina ia. Na estrada que não era feita das pedras amarelas, sem encantos nem fadas, apenas uma mala carregava na mão. Mala cheia do vazio que a acompanhava. Como fosse o medo da felicidade eterna, a clausura úmida das dores. Velhos conhecidos. A menina, da mala não poderia separar-se. Nunca. Um troféu, uma mácula. Passado que carregaria consigo até o fim. Um novo final. A mesma busca.
E quando o céu quis acinzentar, ela, gentil o reverenciou. Destemida de si mesma. Assim a menina ia. Deslumbramento que fazia do sépia, colorido, que de tão vivo ofuscava as vistas. Vai ver por isso, as lágrimas.
sexta-feira, 24 de agosto de 2012
Nona (9º)
Matisse |
Foi de súbito. Susto quase premeditado. A menina estendeu os braços no ar. As mãos cerradas, então abriu.
Foi num gesto grandioso. Impulso quase libertador. Seja feliz! A menina dizia para si. No silêncio entre as notas de Beethoven. Seja feliz! Ela dizia. Fortíssimo.
Nas mãos vazias, a melodia. Constatação. Indemarcadas na paisagem, mãos soltas assim no ar, pareciam menores do que costume, talvez mais tolas.
Foi num suspiro. Coragem quase opressora. Os pés juntos plantados no chão. A menina queria ser grande, mas ali permaneceu, inexistida. A menina queria ser livre. Caminho do qual não poderia retornar.
Foi num momento de iluminação. Força quase complacente. A menina questionou, e mais de uma vez questionou. O mesmo semblante. A mesma busca. Outras notas.
Olhou ao seu redor para se dar conta do presente. Malas feitas. Resignação. A menina adormeceu. Finalmente adormeceu.
domingo, 5 de agosto de 2012
O nada
Claude Monet |
À beira do penhasco, a menina admira o nada. A cabeça abandonada sobre os joelhos, levemente inclinada para cima. Pensamento ausente. E na possibilidade da queda, suas mãos estão úmidas. O peito abalado é inquietude da alma que não pode parar. A menina está farta, mas sabe que não pode parar. Voa alto. Além dos limites do horizonte. Distâncias inimagináveis. Angústia, velha conhecida, agora a acompanha. E inesperado o peso torna-se insuportável. Fardo. Mais uma vez na iminência da queda. Deixar-se cair, seria cair para sempre. Não haverá chão que a ampare em pedaços. Talvez por isso a menina reste ali, admirando o nada com o sol de fundo entre as montanhas, a lua mal apagada, a brisa quase cantiga. A mesma busca. O mesmo desejo. E quando o tempo se esgota, a menina apenas finge que está tudo bem. Ela diz para si, tudo bem.
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