quarta-feira, 20 de junho de 2012

Calmaria


Claude Monet


Foi no lapso do tempo e espaço. Verão. A criança nasceu velha, incompreendida. Pai e mãe não teve, teve filhos. A família, pessoas emolduradas, um retrato na parede nua, decadente, sem sorrisos. O último que saiu, bateu a porta, deixou cair. Abandonado. No chão. Ficou lá. Tudo bem. Amigos teve, dois. Saídos como ela, do mesmo útero, da mesma dor, no mesmo retrato. Abatimento. Eles não vingaram como a menina. Sucumbiram ainda na flor da juventude. Mirrados de alma, sonhadores dos sonhos impossíveis. Doentes. Dementes seria palavra mais adequada. Porque o único prazer da menina era descobri-las: novas palavras velhas, todas elas descortinadas em novos contextos como tivessem acabado de nascer. Ela queria as mais difíceis, mais inalcançáveis se possível fosse. Vivia imagens forjadas. Ilusão. Tenha sido este seu elixir salvador. Nunca renasceu. Crescida, continuou velha, reclusa. Até que um dia foi ter com o mar, expressão maior do Divino. Com ele, conversou em silêncio, horas talvez dias. Às vezes fechava os olhos para saber a sensação que se tinha. Outra vez usou os próprios braços para proteger-se, alento gelado que vinha lá do oceano. O primeiro abraço. Foi bom. Sentiu-se viva como o mar, que fazendo curva no horizonte, se ia... Compreendeu. A crescida menina velha compreendeu tudo. Baixou a cabeça, sorriu para si. Despediu-se em silêncio. Um aceno de cabeça apenas. Gratidão.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

Amor à moda antiga


Portinari


Lili morreu. Dor pungente. Mal necessário. Não quis velório. Detesto velório. O último foi o de mamãe, me obrigaram a ir. Eu tinha somente oito. Ela, somente trinta e três. Muito nova para morrer.  Seu semblante pálido, imóvel, amargo. Era amargura por me deixar para trás.

E no ápice de minha dor por Lili, questionei aquele sonho. Na época, eu tinha somente dez. Era noite de tempestade típica do verão. Lembro-me bem porque até o lençol me fervia os pés. E eu sonhei com aquela menina vindo ao meu encontro. Não sabia onde estavávamos, sabia apenas do olhar azulado, lindo! Seu nome Lili. Ela me dizia ao pé do ouvido, um dia vamos nos casar! Suas palavras entranhadas em meus sentidos, irreversíveis. E a brisa quente de seu sussurro, a gota de saliva que lhe escapava pelos lábios respigada em meu pescoço, a ponta de seu nariz roçando leve minha orelha aguçava-me desejo. Apaixonado, acordei.

Eu, somente vinte. Começo de tarde. Aqui na esquina da minha rua ela me pedia informação. Tinha ensaio de teatro na casa da Fernanda. A Fernanda morava no meu prédio. Coincidência, destino. E o nome dela, da moça que pedia informação, Lili. O olhos não eram azuis. E sim castanhos, mas a gota de saliva...Era ela. Tinha de ser. Ficamos amigos. Saímos eu, Lili e o grupo de teatro. Explicaram-me que preferiam os autores pós modernos, de pensamentos controversos, fragmentados, intensos de sentimentos, problemáticos. Sem aquele papo clichê, sem aquele amor clichê.

Eu me declarei para Lili. Mais shakespeariano impossível. Namoramos. Eu, somente vinte e um. Ela talvez por pena, já nem sei. Eu amava Lili desde os dez. Romanticamente antiquado. Fiz amor com Lili. Mas acho que ela preferia um sexo pós moderno. Tentei ser um pouco mais Jorge Amado, as coisas só pioraram. Perdi naturalidade. Perdi Lili. Que nunca foi minha de verdade. Eu, somente vinte e quatro. Ela foi embora com o Alfredo. Um amigo do teatro, um tipo pós moderno. Foi aí que Lili morreu. Morreu dentro de mim. Supressão. O Joca me disse, esquece esse maldito sonho, sonha outro no lugar. Me Falou de uma amiga, tal de Matilde. Tive esperança de que ela se chamasse Lili.

Ainda procurei Lili em alguns rostos. Dei de cara com Matilde, por insistência do Joca. Mulata de olhos azuis, me chamo Matilde. Fiquei impressionado. Quis dar um de pós moderno. A Matilde queria amor à moda antiga.

Eu, somente vinte e seis. Ela me pediu em namoro. Eu, perdido, aturdido, distraído, já nem sabia como agir. Lili e sua gota de saliva, seu hálito quente, seus amores, seus autores, seus vapores de pós moderna me roubaram o repertório, confundiram-me. Mas a doce Matilde, docemente mulata, azulada no olhar, sussurrou-me ao pé do ouvido, um dia vamos nos casar! A noite quente anunciava tempestade típica do verão.







segunda-feira, 11 de junho de 2012

Refúgio

Rembrandt


Habito na ausência. Meu lugar favorito, de silêncio imperturbável. Mas de repente o impulso, que não se pode controlar, o salto.  Mergulho de cabeça que é para alcançar os pés no chão. E passo horas a decodificar pensamentos,  procuro palavras que os façam grandiosos, sublimes. Mas é que no papel tudo mingua, perde a cor de meus devaneios, e o que era silêncio se torna o refrão de algo que o mundo canta, que se impõe, invasivo, agressivo, dentro de mim. O barulho é ensurdecedor e diante disto a que chamam realidade, retraio. Minhas palavras estão enfraquecidas, meus pensamentos perderam o sentido, em mim tudo se abala, por um segundo deixo de ser eu mesma. É quando mergulho para o alto, de volta para meu refúgio, minha paz inabalável, retorno para ausência. Meu lugar preferido.