sexta-feira, 17 de abril de 2015

Criador e criatura: A breve história de um olhar. De olhos bem fechados


Degas



Toda história precisa de um começo, meio e fim. Era assim que ele entendia sua criação. E seja este, o meio de algo que teve seu início lá trás, no lapso de uma inspiração despretensiosa, assim, quase que por descuido. Dessas coisas que acontecem sem explicação alguma.
Garoa fria, brisa fina. Na vista distante, as águas ouvidas em ritmados instantes a debruçarem-se nas areias da praia solitária. Era este o tom em consonância com a melodia triste: três cordas e um piano na sala vazia que transbordava melancolia por todos os poros e o acolhia, recostado à poltrona, no centro de si, no âmago do mundo, logo ali. Dentro.
Um clássico. Um compositor contemporâneo. Notas que se transmutavam e o transportavam e se misturavam canonicamente à explosão das ondas lá fora. Ele, permanecia de olhos fechados e em sua escuridão particular era possível compreender-se, entregar-se ao tal sentimento que antes não fora capaz de definir.
Movimentos que nasciam desta descoberta. Espaços preenchidos em tempos de oito. Corpos significando gestos alongados na busca da iluminação, em seguida contorcidos e arredondados como quem tentasse resguardar a alma de ferimento mortal.
A história de uma dor, talvez a saga de um amor, impossível, porque somente os amores impossíveis são eternos... E no palco a música ganha corpo, corpos ganham musicalidade, rastros de poesia, romântica intensidade.
Nos pensamentos dele, a dança ganha história, a história ganha vida: três bailarinos, três bailarinas, passos, porté, renversé, brisé... ele tem o ímpeto de juntar-se ao espetáculo, mas continua a residir em sua mente, resignado à sua última arte, sua inspiração criativa. E os movimentos seguem, intercalando-se entre homens e mulheres, chegam ao ápice, envolvidos e conscientes da paixão que se desnuda através dos olhares e das mãos, que se desenham e acariciam e traduzem palavras e juras silenciosas.
E como toda historia que chega ao seu final. E como todo amor que mata. A música soa seus acordes derradeiros, os bailarinos alçam o último voo, o último entrelaçar de corpos, o fim. Um amor, que por amor morre enfim, assim eterno como deve ser.
Uma única lágrima para expressar toda a carga dessa emoção. Os desejados aplausos. O vazio, então. E ele, ainda no impulso do último ato, impregnado pelos resquícios do que nasceu, contudo, terminado morreu, para viver, agora de olhos abertos admira a paisagem quase noturna, quase Chopin. Da varanda deixa-se invadir pela brisa fina, a garoa mais intensa ainda fria, as ondas cadenciadas e monótonas que incansáveis explodem nas areias da praia solitária. Agora é real. Criador e criatura.